1. Breve contexto histórico
Historicamente, o direito de família brasileiro, sob a égide do Código Civil de 1916, era regido pelo princípio da imutabilidade do regime de bens. O regime patrimonial escolhido pelos cônjuges no momento do casamento era considerado um ato jurídico solene e irrevogável, regendo a vida patrimonial do casal até a dissolução do vínculo matrimonial, seja por morte ou divórcio. A rigidez dessa norma refletia a visão tradicional do casamento como uma instituição de caráter estável e imutável, onde as regras patrimoniais eram fixadas de forma definitiva desde o seu início.
A evolução do direito de família, contudo, passou a valorizar a autonomia da vontade e a realidade dinâmica das relações conjugais. Nesse contexto, o Código Civil de 2002 promoveu uma mudança de paradigma, rompendo com o dogma da imutabilidade. O artigo 1.639, § 2º, tornou-se a norma central que admite a alteração do regime de bens, estabelecendo que “é admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. Essa nova regra reflete uma modernização da legislação, permitindo que a vertente patrimonial do casamento se adapte à realidade do casal, evitando que muitos relacionamentos se desfaçam por inadequação do regime de bens, como defendido por juristas renomados.
2. Visão Panorâmica dos Regimes de Bens no Brasil
Para uma compreensão completa sobre a possibilidade de alteração, é fundamental ter uma visão clara dos regimes patrimoniais previstos na legislação brasileira. O Código Civil de 2002 prevê quatro regimes principais:
- Comunhão Parcial de Bens: É o regime supletivo ou “padrão”, adotado automaticamente na ausência de um pacto antenupcial. Nele, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente durante o casamento, enquanto os bens que cada cônjuge já possuía antes da união permanecem de sua propriedade individual.
- Comunhão Universal de Bens: Neste regime, todos os bens, presentes e futuros, dos cônjuges, assim como suas dívidas, se comunicam, independentemente de terem sido adquiridos antes ou depois do casamento.
- Separação de Bens: Dividido em separação convencional (escolhida pelas partes) e separação obrigatória (imposta por lei, como para maiores de 70 anos ou em casos de causas suspensivas do casamento). Em ambos, cada cônjuge mantém seu patrimônio individual, sem comunicação de bens ou dívidas.
- Participação Final nos Aquestos: Um regime misto, menos comum, no qual cada cônjuge mantém seu patrimônio individual durante o casamento. Contudo, na dissolução da sociedade conjugal, os bens adquiridos onerosamente pelo casal são partilhados em comum, de forma semelhante à comunhão parcial.
3. Requisitos para a alteração
A alteração do regime de bens não é um ato livre e desimpedido. O legislador estabeleceu três pilares essenciais que devem ser observados para que a mudança seja autorizada. O primeiro requisito é a
(i) Autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges. O consenso do casal é indispensável, o que significa que o pedido deve ser manifestado conjuntamente, por meio de uma ação judicial de jurisdição voluntária. Não é possível que a mudança ocorra por decisão unilateral de um dos cônjuges.
(ii) O segundo pilar é a motivação válida. A lei exige que a “procedência das razões invocada” seja apurada pelo juiz. O casal deve demonstrar ao magistrado que a alteração é necessária e tem um propósito legítimo. De toda forma, não pode o juiz exigir formalismos ou explicações desnecessárias para autorizar a alteração. Em homenagem à intervenção mínima do Estado nas relações familiares, o juiz deve prestigiar a autonomia privada e autorizar a alteração do regime sem indagações verticais sobre o motivo.
(iii) O terceiro e igualmente fundamental requisito é a ressalva dos direitos de terceiros. A alteração do regime de bens jamais pode ser utilizada como um instrumento para prejudicar credores ou outros terceiros com os quais o casal tenha mantido relações jurídicas. O Judiciário tem o dever de fiscalizar o pedido para garantir que ele não se destina a atos fraudulentos ou a ilícitos fiscais. A presença da motivação e a ausência de prejuízo a terceiros são, portanto, os filtros que o Estado utiliza para controlar a autonomia da vontade do casal, buscando um equilíbrio entre a liberdade privada e a segurança jurídica nas relações sociais e comerciais.
Vale ressaltar que o requisito de “justa causa” é interpretado de forma flexível pela jurisprudência. A vida conjugal e as circunstâncias econômico-financeiras do casal são dinâmicas, o que pode justificar a mudança. Exemplos práticos de motivação incluem:
- Proteção patrimonial e riscos empresariais: A mudança do regime de comunhão parcial para separação total pode ser uma estratégia de planejamento patrimonial legítima.
- Planejamento sucessório e familiar: A alteração pode ser utilizada para organizar a herança, facilitando a sucessão e evitando conflitos futuros entre herdeiros.
- Aprofundamento da união: A jurisprudência mais recente do STJ já aceitou como motivação a busca pela “harmonização do relacionamento e dos bens”. No caso em questão, um casal, casado sob o regime de separação total, buscou a alteração para comunhão universal, alegando que o patrimônio foi construído em esforço comum ao longo dos anos, e que a mudança refletia a consolidação de uma união feliz. Essa decisão mostra uma valorização da autonomia do casal e da realidade da relação, considerando a motivação como legítima por não prejudicar terceiros. No mesmo sentido:
“A melhor interpretação que se pode conferir ao § 2º do art. 1.639 do CC é aquela segundo a qual não se deve”exigir dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de se esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes” (STJ, REsp 1947749/SP , Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 14/09/2021, DJe 16/09/2021).
“A análise do pedido de modificação do regime de bens não deve exigir dos cônjuges justificativas exageradas, pois em atenção aos princípios da mínima intervenção estatal e autonomia privada, a liberdade dos consortes na escolha do modo como será conduzida a vida em comum deverá ser privilegiada” (TJ-MG – Apelação Cível: 50003556220238130427, Relator.: Des.(a) Carlos Roberto de Faria, Data de Julgamento: 23/05/2024, Câmaras Especializadas Cíveis / 8ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 24/05/2024).
4. Os caminhos processuais para a alteração do regime de bens
O procedimento padrão para a alteração do regime de bens é a via judicial. O casal deve, por meio de uma ação judicial de jurisdição voluntária, prevista a partir do art. 734 do CPC, apresentar um pedido conjunto e motivado, sendo obrigatória a representação por advogado. O juiz competente analisa a procedência das razões invocadas e a ausência de prejuízo a terceiros, como credores ou dependentes. Para tal avaliação, o Ministério Público geralmente intervém no processo, notadamente se há interesses de menores envolvidos.
A decisão judicial que autoriza a alteração deve ser averbada no Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais onde o casamento foi celebrado. A averbação é um procedimento administrativo que atualiza o registro do casamento, tornando a mudança pública e garantindo sua validade e oponibilidade a terceiros.
5. A questão da retroatividade
A questão mais debatida sobre a alteração do regime de bens diz respeito à retroatividade dos seus efeitos, ou seja, se a mudança pode retroagir à data da celebração do casamento (ex tunc) ou se produzirá efeitos apenas a partir do trânsito em julgado da decisão (ex nunc).
A posição tradicional e majoritária da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é de que a alteração do regime de bens produz efeitos apenas para o futuro, ou seja, tem eficácia ex nunc. Exemplificando:
“Os efeitos da modificação do regime de bens do casamento operam ‘ex nunc’, isto é, a partir da decisão que homologa a alteração, ficando regidos os fatos jurídicos anteriores e os efeitos pretéritos pelo regime de bens então vigente” (REsp n. 1.947.749/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 16/9/2021) .
Essa tese tem como fundamento a primazia da segurança jurídica e a proteção de terceiros. A justificativa é que a irretroatividade preserva as relações jurídicas preexistentes, evitando o desequilíbrio e a incerteza que a retroação poderia causar, especialmente em relação a atos praticados sob o regime anterior. Nessa visão, a alteração é um ato constitutivo de um novo regime, e não meramente declaratório.
No entanto, em uma decisão paradigmática e unânime no Recurso Especial nº 1.671.422/SP, a Quarta Turma do STJ, sob a relatoria do Ministro Raul Araújo, decidiu que a mudança superveniente do regime de bens do casamento pode, sim, ter efeito retroativo (ex tunc). O caso envolvia um casal que, após anos de casamento no regime de separação total, buscou a alteração para o de comunhão universal, alegando que todo o patrimônio havia sido construído por esforço comum. Confira:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO . ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS DE SEPARAÇÃO TOTAL PARA COMUNHÃO UNIVERSAL. RETROAÇÃO À DATA DO MATRIMÔNIO. EFICÁCIA “EX TUNC”. MANIFESTAÇÃO EXPRESSA DE VONTADE DAS PARTES . COROLÁRIO LÓGICO DO NOVO REGIME. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. Nos termos do art . 1.639, § 2º, do Código Civil de 2002, “é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. 2. A eficácia ordinária da modificação de regime de bens é “ex nunc”, valendo apenas para o futuro, permitindo-se a eficácia retroativa (“ex tunc”), a pedido dos interessados, se o novo regime adotado amplia as garantias patrimoniais, consolidando, ainda mais, a sociedade conjugal . 3. A retroatividade será corolário lógico do ato se o novo regime for o da comunhão universal, pois a comunicação de todos os bens dos cônjuges, presentes e futuros, é pressuposto da universalidade da comunhão, conforme determina o art. 1.667 do Código Civil de 2002 .4. A própria lei já ressalva os direitos de terceiros que eventualmente se considerem prejudicados, de modo que a modificação do regime de bens será considerada ineficaz em relação a eles (art. 1.639, § 2º, parte final) .5. Recurso especial provido, para que a alteração do regime de bens de separação total para comunhão universal tenha efeitos desde a data da celebração do matrimônio (“ex tunc”) (STJ – REsp: 1671422 SP 2017/0110208-3, Relator: Ministro Raul Araújo, Data de Julgamento: 25/04/2023, Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 30/05/2023).
Para casais que consideram a alteração do regime de bens, é fundamental buscar assessoria jurídica especializada. A decisão de modificar o regime é um ato jurídico de extrema seriedade, com consequências de longo prazo para o planejamento patrimonial e sucessório. A análise da motivação e a verificação da ausência de prejuízo a terceiros são cruciais, e um profissional qualificado pode guiar o casal pelo processo judicial complexo, garantindo que todos os requisitos legais sejam atendidos e que a alteração seja devidamente averbada para produzir seus efeitos plenos. A prudência e o planejamento são essenciais para evitar problemas futuros e garantir a segurança jurídica da família e de suas relações patrimoniais.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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