I. Breve introdução
Historicamente, a atividade probatória no processo civil brasileiro era entendida como um leque de atividades estritamente confinado ao curso do processo em primeiro grau. Nessa visão tradicional, o tribunal recursal possuía uma função meramente revisional, limitando-se a receber o acervo fático-probatório consolidado para reexaminar o direito aplicado e, no máximo, rejulgar a matéria de fato nos limites da apelação.
O advento do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) marcou uma significativa inflexão filosófica, alinhada com os princípios constitucionais da eficiência, duração razoável do processo (introduzida pela EC 45/2004) e da primazia do julgamento de mérito (art. 4º, CPC). Essa mudança visa a mitigar o rigor da preclusão em favor da completude da instrução e da justiça da decisão final. O CPC/2015 conferiu ferramentas explícitas que permitem a suplementação probatória, mesmo na instância superior, desde que respeitados o contraditório e a lealdade processual. O desafio imposto a esta nova sistemática é conciliar o direito fundamental à prova, inerente ao contraditório , com a necessidade de estabilidade processual e o prestígio ao duplo grau de jurisdição.
II. O paradigma da preclusão (art. 1.014, CPC; art. 435, CPC)
O art. 1.014 do CPC estabelece a regra da concentração probatória na instância ordinária, ao dispor que “as questões de fato não propostas no juízo inferior poderão ser suscitadas na apelação, se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo de força maior.” Este dispositivo reafirma a preclusão consumativa e temporal, impondo às partes o ônus de produzir todas as provas necessárias durante a fase instrutória de primeiro grau.
Embora a redação do art. 1.014 se refira primariamente a “questões de fato”, a doutrina e a jurisprudência o interpretam como um reforço à vedação da inovação probatória em apelação. O dispositivo visa impedir que o recorrente, de forma estratégica ou por negligência, deixe de produzir provas na primeira instância apenas para surpreender a parte contrária no segundo grau.
No entanto, o próprio artigo prevê uma exceção: se houver motivo de força maior, a prova poderá ser apresentada. Por vezes até para demonstrar a ocorrência de força maior uma das partes terá que apresentar a devida justificativa ao juiz, ou seja, terá que comprovar – por prova documental, por exemplo – que não fez uso no momento adequado porque não era possível.
A principal via pela qual a parte pode, licitamente, introduzir material probatório novo na fase recursal é através da juntada de documentos, conforme a interpretação sistemática do art. 1.014 em conjunto com o art. 435 do CPC.
O art. 435, caput, permite a juntada de documentos após a petição inicial e a contestação se estes se destinarem a fazer prova de fatos supervenientes ou se o documento se tornou conhecido, acessível ou disponível após esses momentos processuais. O parágrafo único do mesmo artigo reforça a admissibilidade quando a parte comprova que a não juntada prévia ocorreu por motivo de força maior ou caso fortuito.
É imperativo o requisito subjetivo da boa-fé. Conforme explicitado pela norma processual, a parte interessada detém o ônus de comprovar o motivo real que a impediu de proceder com a juntada prévia. O juiz ou o tribunal deve, em sua análise, avaliar a conduta da parte pelo dever de boa-fé (art. 5º, CPC). A ausência de justificativa plausível e a evidente tentativa de “prova surpresa” levam à inadmissibilidade da documentação tardia.
III. A posição do STJ
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) adota uma interpretação estrita dos requisitos de superveniência ou inacessibilidade. A Corte Superior exige que o recorrente comprove, de maneira cabal, a causalidade entre o motivo alegado (força maior, inacessibilidade) e a omissão na juntada anterior.
Esse rigor é notório em matérias que envolvem a estabilidade da coisa julgada, como a ação rescisória. O STJ já pacificou o entendimento de que, mesmo para fins rescisórios, o autor deve comprovar que a prova nova (existente antes do julgamento que se busca rescindir) era de fato desconhecida ou que não pôde ser juntada anteriormente. Este entendimento, embora aplicado à rescisória, orienta o grau de diligência exigido em sede de apelação.
Em alguns precedentes o STJ tem rechaçado a tentativa de inovar em fases processuais avançadas sem a devida justificação. Por exemplo, a juntada de documentos novos em sede de embargos de declaração no Tribunal é considerada inadmissível, especialmente quando o documento poderia ter sido apresentado anteriormente no primeiro grau, demonstrando a tardia apresentação sem justificativa válida.
O rigor na aplicação do art. 1.014 transcende a mera formalidade processual. Ele resguarda o princípio da dialeticidade e a estrutura do devido processo legal. A permissão irrestrita de introdução de provas cruciais na instância superior esvaziaria o juízo de primeiro grau e permitiria que o recorrente utilizasse táticas de retenção probatória. Assim, a exceção se aplica principalmente à juntada de documentos supervenientes ou desconhecidos, enquanto a produção de provas mais complexas (periciais ou testemunhais) por iniciativa da parte é extremamente rara, direcionando tais atividades para o poder instrutório do Relator, previsto expressamente no art 932, I, do CPC.
IV. Os poderes instrutórios do Relator
Em contraste com a rigidez imposta às partes pelo Art. 1.014, o CPC/2015 conferiu poderes explícitos ao órgão judicial recursal para conduzir a instrução. O artigo 932, I, inova ao estabelecer que incumbe ao Relator “dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à produção de prova”.
Esta disposição confere ao Relator, como porta-voz do órgão colegiado, a competência para determinar qualquer prova que se revele essencial para a formação da convicção judicial e para a justiça do julgamento do mérito. Embora o poder instrutório do juiz fosse defendido pela doutrina mesmo sob o CPC/73, o art. 932, I, positivou essa autoridade em sede recursal, que anteriormente era exercida por interpretação sistemática ou por previsões regimentais. O Relator pode, assim, estender a amplitude dos poderes instrutórios conferidos ao juiz singular.
O STJ reconhece que a gestão probatória, incluindo a decisão sobre a autorização de produção de prova, está inserida no livre convencimento motivado do julgador. A decisão do Relator, com base no art. 932, I, sobre a pertinência e admissibilidade das provas é, pois, um ato de direção processual. O poder instrutório do Relator justifica-se especialmente no recurso de apelação, dado que os tribunais estão autorizados a re-julgar a matéria de fato, ainda que destituídos do benefício da imediatidade na colheita da prova.
A harmonização dogmática entre a iniciativa das partes e a iniciativa do Tribunal é mediada pelo princípio da cooperação. O dever do Relator de instruir (art. 932, I) e o dever do recorrente de sanar vícios (art. 932, parágrafo único) ou justificar a prova nova (arts. 1.014/435) são manifestações do processo cooperativo: o Tribunal busca o julgamento de mérito e a parte deve agir com diligência e boa-fé, comprovando a impossibilidade anterior de produção probatória.
A produção probatória em grau recursal é, em essência, uma atividade supletiva e corretiva. Ela não deve ser utilizada para compensar a negligência estratégica da parte que, tendo tido a oportunidade em primeiro grau, optou por se omitir. A exceção (art. 1.014) ou a iniciativa ex officio (art. 932, I) se destina a aperfeiçoar o julgamento, não a substituir o ônus probatório primário das partes.
V. A questão do reexame fático no STJ
O alcance da atividade probatória na instância superior é drasticamente modulado pela natureza do recurso. Enquanto a apelação (recurso de fundamentação livre) permite que o Tribunal rejulgue a matéria de fato, o Recurso Especial e o Recurso Extraordinário possuem âmbito restrito, destinando-se apenas ao reexame da solução que possa ter afrontado a lei federal ou a Constituição.
Neste contexto, o STJ impõe a aplicação intransigente da Súmula 7, que veda o reexame de fatos e provas. Se o Tribunal de origem, no exercício de sua competência ordinária, concluiu pela suficiência ou insuficiência das provas, ou se dispensou a conversão do julgamento em diligência para a produção de prova técnica, a revisão dessa conclusão pelo STJ demandaria o reexame de circunstâncias fáticas da causa, o que é vedado. A Súmula 7 atua como um obstáculo processual à reapreciação da necessidade probatória em sede extraordinária.
Apesar da Súmula 7 restringir a análise fática, o STJ intervém ativamente quando a falha na instrução ou na apreciação da prova representa um erro in procedendo ou violação de norma processual fundamental, como o contraditório ou a ampla defesa.
A Corte Superior não se imiscui na análise fática sobre se a prova é suficiente, mas corrige a ofensa ao princípio fundamental processual. Por exemplo, se o Tribunal de origem não analisar o pedido da defesa para conversão do julgamento em diligência após a juntada de nova prova por ordem do Relator, o STJ pode anular o julgamento da apelação criminal e determinar o retorno dos autos para que a corte local aprecie o pedido. Essa intervenção visa garantir o direito de oposição e de contestação da prova. A causa da intervenção do STJ é, portanto, a violação legal/constitucional do rito (o direito de defesa), e não a deficiência do acervo fático em si.
VI. Conclusões
A análise do regime probatório na fase recursal sob o CPC/2015 revela um sistema de harmonização entre o princípio da concentração, a eficiência processual e a garantia do contraditório. O legislador buscou ultrapassar o paradigma da rigidez formal, conferindo mecanismos explícitos tanto para que a parte superveniente possa agir (arts. 1.014/435) quanto para que o próprio Tribunal atue (art. 932, I).
A possibilidade de produção probatória na fase recursal é inegável, mas fortemente regrada. Para as partes, a atividade é excepcional e restrita, demandando comprovação rigorosa de superveniência, inacessibilidade ou força maior, sob pena de preclusão.
Para o julgador, o art. 932, I, representa um avanço em direção a um ativismo processual qualificado. O Relator detém o poder de ordenar a instrução, via conversão do julgamento em diligência, para a correta solução do mérito, especialmente no âmbito da apelação. Essa prerrogativa é crucial, pois alinha a atuação do Tribunal aos imperativos constitucionais de eficiência e justiça da decisão.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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