A questão da possibilidade de intervenção do Poder Judiciário em contratos de honorários advocatícios, notadamente para fins de redução da verba, constitui um dos pontos de maior relevância e, ao mesmo tempo, de maior controvérsia no cenário jurídico brasileiro contemporâneo. A problemática reside na tensão dialética entre dois pilares do direito civil: de um lado, a autonomia da vontade, traduzida no princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), que garante a segurança jurídica e a previsibilidade das relações negociais; de outro, a necessidade de se coibir abusos, manifestada por meio dos princípios modernos da função social do contrato e da boa-fé objetiva, que impõem limites à liberdade de contratar em prol da equidade e da justiça material.
O presente texto se propõe a aprofundar a análise dessa complexa intersecção, examinando a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e de tribunais estaduais. O objetivo é desvelar as nuances que orientam a atuação judicial. A investigação demonstrará que a intervenção, embora admitida, é uma medida excepcional e balizada por critérios específicos, não constituindo uma afronta arbitrária à liberdade contratual, mas sim um mecanismo de correção de desequilíbrios manifestos ou de violações a princípios de ordem pública.
A) A força vinculante dos contratos
A análise da intervenção judicial em contratos de honorários deve, necessariamente, partir da compreensão do princípio do pacta sunt servanda. Essencial para a teoria clássica dos contratos, este princípio estabelece que aquilo que é pactuado entre as partes, de forma livre e consciente, tem FORÇA DE LEI entre elas. Tal concepção, profundamente arraigada no sistema positivista de normas, tem por escopo garantir a estabilidade e a segurança das relações jurídicas. Historicamente, qualquer tentativa de intervenção judicial no contrato era percebida como uma afronta à soberania da vontade individual, que era vista como a única fonte legítima da obrigação.
O contrato de honorários advocatícios, nesse contexto, é um exemplo paradigmático de acordo de vontades que se destina a ser cumprido em seus termos. A legislação brasileira, por meio do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/1994) e do Código de Processo Civil, eleva o contrato de honorários assinado por duas testemunhas à condição de título executivo extrajudicial, reforçando sua liquidez, certeza e exigibilidade. Tal característica, ao assegurar a celeridade na cobrança de valores devidos, sublinha a proteção legal conferida a este tipo de pacto.
B) A proteção legal dos honorários advocatícios
Um elemento de suma importância na discussão é a natureza alimentar dos honorários advocatícios. A jurisprudência já se posicionou no sentido de que os honorários advocatícios, independentemente de sua origem, possuem natureza alimentar, uma vez que se destinam à subsistência do profissional e de sua família. A verba é, portanto, essencial para a dignidade da advocacia e para o exercício pleno do direito de defesa.
Essa proteção legal, contudo, cria uma aparente contradição que é fundamental para a análise da intervenção judicial. De um lado, a natureza alimentar é um argumento robusto em defesa da intangibilidade do contrato, impedindo que a verba do advogado seja arbitrariamente reduzida. A Campanha Nacional de Valorização dos Honorários, conduzida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), reforça a importância de que a verba seja digna e não “aviltante”. A mesma lógica, entretanto, sugere que a fixação de valores exorbitantes também compromete a dignidade do cliente, criando um desequilíbrio social incompatível com os princípios constitucionais. Em uma perspectiva de equilíbrio, a mesma dignidade que protege o advogado de receber verbas irrisórias pode ser invocada para proteger o cliente de pagamentos excessivos que configurem abuso. A jurisprudência, ao admitir a alteração de honorários “irrisórios ou exorbitantes”, demonstra que a proteção não é unilateral, mas busca a razoabilidade para ambas as partes. A intervenção judicial, nesse caso, não é um ato de benevolência, mas um ato de correção de um desequilíbrio flagrante que transborda a mera má negociação.
Veja, a propósito, alguns precedentes sobre o tema:
“(…) O Código de Ética e Disciplina da OAB em seu art. 36, prevê que os honorários profissionais devem ser fixados com moderação e ainda, o art. 38 estabelece que o proveito financeiro do profissional nunca poderá ser superior ao de seu cliente. Deve ser reconhecida a abusividade e a contrariedade aos princípios de probidade e boa fé objetiva constantes do art . 422 do Código Civil, bem como aos art. 36 e 38 do Código de Ética da OAB, a cláusula contratual que fixa honorários convencionais em valor exorbitante, gerando proveito econômico manifestamente excessivo para os procuradores em detrimento do constituinte (…) (TJ-MG – AC: 10000160099172002 MG, Relator.: Domingos Coelho, Data de Julgamento: 16/10/2019, Data de Publicação: 18/10/2019).
“(…) A regra geral é a não intervenção do Poder Judiciário no percentual dos honorários contratuais pactuados. Todavia, excepcionalmente, há de se resguardar os interesses do representado hipossuficiente, mormente quando restar evidenciada possível abusividade da cláusula pactuada. Os honorários abusivos podem se constituir em violação a dever ético (art . 34, XX, da Lei nº 8906/94), sendo certo que o art. 36 do Código de Ética e Disciplina da OAB determina que os honorários profissionais deve ser fixados com moderação e, quando acrescidos dos honorários de sucumbência, não devem ser superiores às vantagens advindas em favor do constituinte (…) (TRF-1 – AC: 10008931820194019999, Relator.: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO DE ASSIS BETTI, Data de Julgamento: 05/06/2019, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: 26/06/2019).
Perceba que a intervenção judicial tem caráter excepcional e somente se justifica se, a partir da análise do caso concreto, houver comprovada exorbitância.
C) Mitigação da força obrigatória dos contratos
A rigidez do pacta sunt servanda foi progressivamente atenuada pela evolução do direito contratual, que passou a incorporar princípios orientadores como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Este, em especial, desempenha um papel crucial nessa evolução. Ele exige, das partes contratantes, uma conduta pautada pela lealdade, probidade e honestidade em todas as fases da relação contratual, desde as negociações preliminares até a fase pós-execução. Este princípio cria “deveres laterais ou anexos” de conduta, como o dever de informação, cooperação e proteção da legítima expectativa da outra parte, que devem ser observados para que a relação negocial não seja fonte de prejuízo.
Mais do que isso, a boa-fé objetiva também tem a função de limitar o exercício de direitos que, embora formalmente previstos no contrato, acabam por quebrar a confiança e a expectativa legítima da outra parte, levando a um desequilíbrio injustificável. Essa limitação é fundamental para a compreensão da intervenção judicial. Um contrato pode ser formalmente válido, sem que se configurem os vícios de consentimento tradicionais, como erro, dolo ou coação, mas ainda assim violar a boa-fé objetiva se, por exemplo, o advogado se aproveitar da vulnerabilidade do cliente para fixar honorários em patamares desproporcionais.
A jurisprudência do STJ ilustra essa aplicação de forma inequívoca. Ao julgar um caso envolvendo honorários contratuais, o STJ interveio no acordo não com base no Código de Defesa do Consumidor (cuja aplicação aos contratos de serviços advocatícios é rechaçada pela Corte), mas sim com fundamento no Código Civil, analisando as peculiaridades do caso concreto. A intervenção foi justificada pela baixa instrução da cliente e sua condição de necessidade econômica no momento da contratação. A Corte não se limitou a verificar a ausência de um vício de consentimento formal; ela avançou para analisar o contexto fático da contratação e a conduta das partes, concluindo que o acordo, embora tecnicamente válido, violava o dever de lealdade e a expectativa legítima da parte mais vulnerável[1].
d) Limites e exceções à intervenção
A análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça revela uma posição equilibrada, que, embora reafirme a regra da não intervenção, consagra exceções bem definidas. A corte busca um delicado ponto de equilíbrio entre a segurança jurídica e a necessidade de se evitar abusos.
A posição majoritária e reiterada do STJ é a de que não se admite a redução de honorários contratuais quando não há um vício de consentimento na sua estipulação. O contrato de honorários, sendo fruto da livre manifestação de vontade das partes, deve prevalecer. A jurisprudência defende que o Judiciário não pode reescrever o que foi livremente pactuado.
Um precedente notório, relatado pela Ministra Nancy Andrighi na 3ª Turma do STJ, reforça essa regra. No caso, a corte negou a intervenção de ofício de um juiz que havia reduzido a verba de honorários de 20% para 10% em um inventário, sob o pretexto de proteger o interesse de um herdeiro menor. O colegiado entendeu que a contratação do advogado constituía um “ato de simples administração” da inventariante e que o trabalho do profissional havia gerado um “acréscimo patrimonial substancial” para a herança, o que descaracterizava o prejuízo. A decisão sublinha a autonomia da vontade e a validade da cláusula contratual.
Além disso, a Corte Especial do STJ pacificou o entendimento de que a redução de honorários só é possível se houver “pedido expresso na petição” da parte interessada. A vedação à atuação ex officio do juiz é um corolário do princípio da inércia da jurisdição e do respeito aos limites da lide, evitando um julgamento além do que foi pedido (ultra ou extra petita).
Apesar da regra geral de não intervenção, a jurisprudência do STJ admite, em caráter excepcional, a alteração do quantum dos honorários advocatícios quando o valor se mostra “irrisório ou exorbitante2. A intervenção, nesses casos, não se baseia na existência de um vício de consentimento, mas na violação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A alteração visa coibir o “enriquecimento sem causa” de uma das partes. A existência dessa exceção é uma forma de harmonizar o respeito ao pacta sunt servanda com a busca pela justiça material, demonstrando que o STJ não adota uma posição puramente liberal, mas sim uma abordagem que busca um ponto de equilíbrio.
Essa dualidade na jurisprudência não é uma contradição, mas a manifestação de um esforço judicial para garantir que a dignidade da advocacia seja preservada (impedindo honorários aviltantes) e que a segurança do cliente também seja protegida (impedindo valores abusivos).
O papel do Judiciário, portanto, não é o de reescrever contratos, mas sim o de atuar como um guardião da equidade, corrigindo distorções que manifestamente ofendem princípios de ordem pública. Essa abordagem multifacetada garante a segurança jurídica e a confiança nas relações entre advogado e cliente, ao mesmo tempo em que coíbe abusos e promove a justiça material. Em última análise, a jurisprudência brasileira sobre o tema reflete um esforço contínuo para equilibrar a proteção à dignidade da advocacia com a necessidade de se evitar que o exercício da profissão se torne uma fonte de injustiça para a parte que busca amparo legal. A intervenção judicial, nessas situações, não é uma exceção arbitrária, mas uma prerrogativa principiológica que assegura a integridade do sistema jurídico como um todo, desde que, é claro, também seja feita à luz das peculiaridades do caso concreto.
[1] “(…) O CDC não se aplica à regulação de contratos de serviços advocatícios. Precedentes. 3 . Consubstancia lesão a desproporção existente entre as prestações de um contrato no momento da realização do negócio, havendo para uma das partes um aproveitamento indevido decorrente da situação de inferioridade da outra parte. 4. O instituto da lesão é passível de reconhecimento também em contratos aleatórios, na hipótese em que, ao se valorarem os riscos, estes forem inexpressivos para uma das partes, em contraposição àqueles suportados pela outra, havendo exploração da situação de inferioridade de um contratante. 5.Ocorre lesão na hipótese em que um advogado, valendo-se de situação de desespero da parte, firma contrato quota litis no qual fixa sua remuneração ad exitum em 50% do benefício econômico gerado pela causa. 6. Recurso especial conhecido e provido, revisando-se a cláusula contratual que fixou os honorários advocatícios para o fim de reduzi-los ao patamar de 30% da condenação obtida”. (STJ – REsp: 1155200 DF 2009/0169341-4, Relator.: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 22/02/2011, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2011).
.
.
.
Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
Facebook: https://www.facebook.com/elpidiodonizetti
Instagram: https://www.instagram.com/elpidiodonizetti
LinkedIn:https://www.linkedin.com/in/elp%C3%ADdio-donizetti-advogados-4a124a35/