Na relação jurídica processual, as partes têm faculdades, ônus e deveres. As faculdades processuais se traduzem em escolhas a serem feitas pelas partes durante a tramitação da demanda. Algumas faculdades, a princípio, não trazem qualquer consequência jurídica negativa para quem as exerce, como nos casos em que a parte revoga procuração anteriormente concedida e constitui novo procurador nos autos. Outras faculdades, se não exercidas pelas partes, podem acarretar prejuízos, principalmente no que tange ao resultado da demanda; nessas hipóteses, as faculdades são chamadas de ônus processuais e estão diretamente ligadas ao próprio interesse da parte, que arcará com as respectivas consequências processuais. Como exemplo, podemos citar o ônus do réu de contestar tempestivamente a demanda. Por fim, os deveres processuais são de natureza pública[1] e estão ligados aos interesses de todos os sujeitos processuais. O descumprimento de um dever poderá gerar graves sanções, inclusive de natureza penal.
Neste espaço, trataremos dos deveres processuais, que visam assegurar o respeito mútuo e a lealdade entre os sujeitos processuais, tal como ocorre com as relações jurídicas em geral. Para tanto, o art. 77 do CPC/2015 elencou os deveres a serem observados pelas partes e por todos aqueles que de qualquer forma participam do processo. São eles:
a) expor os fatos em juízo conforme a verdade (inc. I): não se admite a mentira deliberada e intencional, com o claro objetivo de tumultuar o processo e/ou prejudicar a parte contrária. Age, por exemplo, de má-fé aquele que nega ser sua uma assinatura aposta em um contrato, o que leva à realização de prova pericial, pela qual se constata a sua autenticidade;[2]
b) deixar de formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento (inc. II): aqui o que não se admite é que a parte formule pretensão claramente descabida[3], o que não se confunde, por exemplo, com o equívoco cometido na apresentação de fundamento defensivo;
c) não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito (inc. III): as provas a serem produzidas devem ter relação com o objeto do processo, ou seja, com o que se está discutindo. Caso o juiz perceba que as provas requeridas ou que as demais postulações são meramente protelatórias pelas partes, poderá indeferi-las (arts. 139, III, e 370, parágrafo único);
d) cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza antecipada ou final, e não criar embaraços à sua efetivação (inc. IV): essa disposição visa assegurar a efetividade do processo. Nesse caso, não haverá responsabilidade por dano processual (arts. 79 a 81), mas ato atentatório à dignidade da justiça (art. 77, § 1º), com a aplicação da multa prevista no § 2º do art. 77;
e) declinar o endereço, residencial ou profissional, onde receberão intimações no primeiro momento que lhes couber fala nos autos, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva (inc. V): as partes e os advogados têm a obrigação de manter endereço atualizado no processo, para efeito de intimação dos atos processuais. A consequência para a ausência desta comunicação está prevista no art. 274, parágrafo único, do CPC/2015: “presumem-se válidas as intimações dirigidas ao endereço constante dos autos, ainda que não recebidas pessoalmente pelo interessado, se a modificação temporária ou definitiva não tiver sido devidamente comunicada ao juízo, fluindo os prazos a partir da juntada aos autos do comprovante de entrega da correspondência no primitivo endereço”;
f) não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso (inc. VI): caso o juiz reconheça a violação a este dispositivo, deverá determinar o reestabelecimento do estado anterior, podendo, ainda, proibir a parte de falar nos autos até a purgação do atentado (art. 77, § 7º). Além disso, assim como o inc. IV, caso o juiz constate o descumprimento desse dever, deverá advertir à parte, ao seu procurador ou a quem de qualquer forma estiver participando do processo, que a conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça, com a consequente aplicação de multa de até vinte por cento do valor da causa, conforme a gravidade da conduta (art. 77, § 2º). Se o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até dez vezes o salário mínimo vigente (§ 5º). A multa por ato atentatório à dignidade da justiça pode ser aplicada independentemente das sanções previstas nos arts. 523, § 1º, e 536, § 1º, que tratam, respectivamente, da multa pelo não pagamento voluntário de obrigação de pagar quantia certa fixada em sentença, e daquela que pode ser aplicada pelo juiz para forçar o cumprimento de obrigação de fazer e de não fazer. Se a multa não for paga no prazo fixado pelo juiz e a decisão que a fixou transitar em julgado, o valor será inscrito como dívida ativa da União ou do Estado e a sua execução observará o mesmo procedimento das execuções fiscais. Os advogados públicos ou privados, bem como os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público, não se submetem às disposições previstas nos §§ 2º a 5º do art. 77, que tratam da multa por ato atentatório à dignidade da justiça. Aos advogados privados valem as regras do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados, que possuem comandos próprios para a punição em virtude do mau exercício da profissão. As responsabilidades dos demais entes (membros da Defensoria Pública e do Ministério Público) estão disciplinadas em suas respectivas leis orgânicas e serão apuradas pelo órgão competente (corregedoria), ao qual o juiz oficiará (art. 77, § 6º).[4]
g) informar e manter atualizados seus dados cadastrais perante os órgãos do Poder Judiciário e, no caso do § 6º do art. 246 do CPC/2015, da Administração Tributária, para recebimento de citações e intimações: a Lei 14.195, de 26 de agosto de 2021, acrescentou esse inciso (VII) ao art. 77. A primeira parte se assemelha ao dever previsto no inciso V, segundo o qual incumbe aos sujeitos do processo declinar o endereço residencial ou profissional, onde receberão intimações, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva. A consequência para a ausência desta comunicação está prevista no art. 274, parágrafo único, do CPC/2015: “presumem-se válidas as intimações dirigidas ao endereço constante dos autos, ainda que não recebidas pessoalmente pelo interessado, se a modificação temporária ou definitiva não tiver sido devidamente comunicada ao juízo, fluindo os prazos a partir da juntada aos autos do comprovante de entrega da correspondência no primitivo endereço”. Ocorre que a previsão do art. 77, VII, é mais ampla e ainda exige que a atualização cadastral, inclusive de dados eletrônicos, seja realizada perante a REDESIM (Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios), com possível compartilhamento com órgãos do Poder Judiciário. Essa junção de informações permitirá, por exemplo, que os sistemas eletrônicos do Tribunal (PJE, p. ex.) busquem informações de outros cadastros ou daqueles já existentes na plataforma para realizar a citação de pessoas físicas e jurídicas.
Ressalte-se que apesar de não mais constar expressamente no capítulo referente aos deveres das partes e de seus procuradores a expressão “proceder com lealdade e boa-fé” (art. 14, II, do CPC/1973), tais deveres são inerentes a todos aqueles que influenciam na condução do processo: magistrados, membros do Ministério Público, partes, advogados, peritos, serventuários da justiça e testemunhas. Além disso, o dever genérico de comportamento conforme a boa-fé encontra amparo no atual art. 5º, no capítulo referente às normas fundamentais do processo civil.
Importa frisar, ainda, que os representantes judiciais das partes – incluindo-se aqueles que as representam em razão de incapacidade processual – não podem ser compelidos a cumprir decisão em substituição de seus representados (art. 77, § 8º). Por exemplo, descabe ao juiz determinar que o advogado do autor entregue o bem discriminado na sentença na hipótese de seu cliente descumprir determinação judicial no mesmo sentido.
Por fim, o art. 78 veda o emprego de expressões ofensivas nos escritos apresentados pelas partes, pelos procuradores, pelos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública e, ainda, pelo próprio magistrado. Se as condutas ofensivas forem manifestadas oral ou presencialmente, o juiz deverá advertir o ofensor, sob pena de lhe ser cassada a palavra. Se, no entanto, as expressões estiverem escritas, o órgão jurisdicional, de ofício ou a requerimento do ofendido, determinará que elas sejam riscadas, sendo ainda cabível o requerimento do ofendido no sentido de que seja expedida certidão com o inteiro teor das expressões ofensivas utilizadas (§§ 1º e 2º).
Como se vê, os deveres estabelecidos no art. 77 do CPC/2015 visam assegurar, em atenção ao anseio público, além da lealdade e da probidade, a composição acertada e justa do litígio, conquanto contrária aos interesses particulares de uma das partes.
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”.
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[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 83.
[2] Exemplo citado por Marcus Vinicius Rios Gonçalves (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1, p. 116).
[3] A título de exemplo: “Agravante defende que o valor dos aluguéis deve ser proporcional a sua cota parte do imóvel e não deve ser pago integralmente como pretende o agravado, de modo que o montante correto corresponderia a R$ 300,00 (trezentos reais), e não R$ 600,00 (seiscentos reais). Descabimento. Questão relativa ao valor dos aluguéis transitou em julgado e encontra-se estabilizada pela coisa julgada. Aplicação do princípio da fidelidade ao título executivo. Ofensa ao dever de boa-fé, de expor os fatos conforme a verdade e de não formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento. Litigância de má-fé caracterizada (…). (TJ-SP – AI: 22050407620228260000 SP 2205040-76.2022.8.26.0000, Relator: Clara Maria Araújo Xavier, Data de Julgamento: 13/01/2023, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/01/2023).
[4] Antes do CPC/2015, a regra do art. 14, V, do CPC/1973 (e atual art. 77, IV), já abrangia os advogados do setor privado. Segundo o STF, por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.652-6/DF, a ressalva na parte inicial do parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil alcança todos os advogados com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos.