Todos os juízes, incluindo-se os órgãos colegiados, têm jurisdição, ou seja, têm o poder de dirimir conflitos, aplicando a lei aos casos concretos. O exercício desse poder está, no entanto, condicionado ao território nacional e às disposições constantes no ordenamento jurídico pátrio. Fora das hipóteses elencadas no CPC, a jurisdição nacional não poderá atuar, devendo respeitar a soberania dos outros países.
Cândido Rangel Dinamarco explica que a exclusão da jurisdição brasileira para processar e julgar determinadas ações possui três razões, quais sejam “a) a impossibilidade ou grande dificuldade para cumprir em território estrangeiro certas decisões dos juízes nacionais; b) a irrelevância de muitos conflitos em face dos interesses que ao Estado compete preservar, e c) a conveniência política de manter certos padrões de recíproco respeito em relação a outros Estados”.[1]
Podemos dizer, ainda, que as limitações decorrem do princípio da efetividade, isto é, da necessidade de dar efetividade às decisões proferidas pelos tribunais brasileiros. Inócua seria, por exemplo, decisão proferida pela justiça brasileira acerca do domínio de imóvel situado em outro país, uma vez que, em razão dos limites da soberania nacional, não disporia a nossa Justiça de instrumentos para fazer cumprir a sentença.
Os limites da jurisdição nacional estão elencados nos arts. 21 a 25, que compõem o Capítulo I do Título II (“Dos limites da jurisdição brasileira e da cooperação internacional”). Nesses dispositivos o legislador elencou as circunstâncias que, presentes, justificam a atuação da autoridade judiciária brasileira, seja de forma concorrente (arts. 21 e 22) ou exclusiva (art. 23). Não se enquadrando a hipótese nesse rol deve o processo respectivo ser extinto sem resolução do mérito, já que não pode ser julgado pela justiça brasileira por ausência não de competência, mas da própria jurisdição.
É preciso que se tenha cuidado, no entanto, com o entendimento que vem sendo considerado pela doutrina e pela jurisprudência, no sentido de que o rol dos arts. 21 e 23 do CPC/2015 não é exaustivo, podendo existir processos que não se encontram na relação contida nessas normas, e que, não obstante, são passíveis de julgamento no Brasil. Nesse sentido, já decidiu o STJ que deve ser analisada a eventual existência de interesse da autoridade judiciária brasileira no julgamento da causa, a possibilidade de execução da respectiva sentença e a concordância, em algumas hipóteses, das partes envolvidas em submeter o litígio à jurisdição nacional.[2]
Nos casos dos arts. 21 e 22, a competência da justiça brasileira é considerada “concorrente” porque não exclui a competência de outros países, cabendo ao interessado optar por propor a ação no Brasil ou em país igualmente competente, ou mesmo em ambos os lugares ao mesmo tempo, uma vez que o ajuizamento de ação perante tribunal estrangeiro “não induz litispendência e não obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas, ressalvadas as disposições em contrário de tratados internacionais e acordos bilaterais em vigor no Brasil” (art. 24). Em outras palavras, nesses casos de competência concorrente tanto o juízo brasileiro quanto o juízo estrangeiro têm competência para a causa. Caso opte por demandar em outro país, a sentença estrangeira só produzirá efeitos no Brasil quando homologada pelo Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, “i”, da Constituição Federal.
São três as hipóteses de competência da autoridade judiciária brasileira elencadas no art. 21, as quais também já estavam previstas no CPC/1973:
a) Ações em que o réu, qualquer que seja sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil (inc. I). Essa disposição vale para o réu pessoa física ou jurídica, sendo que para este considera-se domicílio a agência, filial ou sucursal (art. 21, parágrafo único).
b) Ações em que no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação (inc. II). Se o negócio jurídico celebrado entre as partes tiver o Brasil como local para cumprimento das obrigações pactuadas, ainda que as partes sejam estrangeiras, a ação pode ser proposta junto ao órgão jurisdicional brasileiro. Disposição semelhante está no art. 12 da LINDB.[3]
c) As ações em que o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil (inc. III). Nessa hipótese se, por exemplo, um estrangeiro pratica ato ilícito contra pessoa dentro do território nacional, a ação de reparação de danos poderá ser proposta no Brasil, ainda que o ofensor não esteja aqui domiciliado.
O art. 22, por sua vez, traz novas hipóteses de competência concorrente da autoridade jurisdicional brasileira. Na verdade, algumas das regras contidas neste dispositivo são novidades apenas para o texto do Código de Processo Civil, porquanto já estavam dispostas em nosso ordenamento. Vejamos, então, cada uma delas.
a) A autoridade judiciária brasileira será competente para processar e julgar as ações de alimentos quando o credor tiver seu domicílio ou residência no Brasil ou o réu mantiver vínculos no Brasil, tais como posse ou propriedade de bens, recebimento de renda ou obtenção de benefícios econômicos (inc. I, “a” e “b”);
O dever de prestar alimentos pode ser considerado como uma obrigação jurídica extensiva às pessoas pertencentes ao mesmo grupo familiar, que possuem o dever de assistência. Esse dever tem como pressupostos a existência de vínculo de parentesco, casamento ou união estável (incluindo-se aqui a união homoafetiva), a necessidade de quem pede os alimentos e a possibilidade de quem os deve (art. 1.694, § 1º, do Código Civil).
Há, ainda, os alimentos indenizatórios, que são aqueles devidos em decorrência da prática de um ato ilícito, como, por exemplo, uma lesão corporal grave que acabe impossibilitando o ofendido de trabalhar e de prover o sustento das pessoas que dele dependem.
O fato é que, em ambos os casos, existe uma obrigação que deve ser cumprida pelo devedor dos alimentos, seja ele parente do alimentando (alimentos parentais) ou ofensor da vítima (alimentos indenizatórios). A ação, se tal obrigação tiver de ser cumprida no Brasil, será proposta perante a autoridade jurisdicional brasileira, sendo perfeitamente aplicável a regra do já mencionado art. 21, II.
O Brasil já havia ratificado a Convenção Interamericana Sobre Obrigação Alimentar,[4] a qual dispõe, em seu art. 8º, que a competência para conhecer das reclamações de alimentos pode ser, a critério do credor: a) do juiz ou autoridade do Estado de domicílio ou residência habitual do credor; b) do juiz ou autoridade do Estado de domicílio ou residência habitual do devedor; ou c) do juiz ou autoridade do Estado com o qual o devedor mantiver vínculos pessoais, tais como posse de bens, recebimento de renda ou obtenção de benefícios econômicos.
De qualquer modo, a positivação desta regra na lei processual civil demonstra a preocupação do legislador em tornar mais efetiva as disposições relativas ao tema, possibilitando ao alimentando escolher demandar em local que melhor atenda às suas necessidades.
Em termos práticos podemos concluir que o fato de o devedor de alimentos não residir no país, não é causa suficiente para afastar a jurisdição nacional. Se o réu não tem domicílio ou residência no Brasil, a ação de alimentos será proposta no foro de domicílio do autor, ou seja, do credor dos alimentos, na forma do art. 46, §2º, CPC.
b) A autoridade judiciária brasileira será competente para processar e julgar as ações decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver residência no Brasil (inc. II);
Para facilitar a defesa dos direitos dos consumidores, o Código de Defesa do Consumidor contempla regra segundo a qual as ações de responsabilidade do fornecedor de produtos ou serviços pode ser proposta perante o domicílio do autor (art. 101, I), o que não afasta a possibilidade de o consumidor optar pelo foro de eleição contratual, se este lhe for mais benéfico.[5]
A regra estampada no CPC/2015 pode parecer uma repetição do que já se encontra positivado na norma consumerista, entretanto, preferimos crer que a nova legislação reforçou a ideia de que os consumidores residentes ou domiciliados no Brasil, mas que não estão no território nacional no momento da contratação do produto ou serviço, ainda assim podem demandar contra o fornecedor por meio de ação proposta perante a Justiça Brasileira. Do mesmo modo, as contratações realizadas por intermédio de e-commerces podem ser discutidas no Brasil, evitando que o consumidor residente e domiciliado no país venha a ser obrigado a se submeter a outro ordenamento jurídico que não lhe seja favorável.
c) A autoridade judiciária brasileira será competente para processar e julgar as ações em que as partes, expressa ou tacitamente, se submeterem à jurisdição nacional (inc. III).
O dispositivo permite a eleição da jurisdição brasileira em contratos internacionais. Trata-se de escolha da jurisdição por meio de estipulação entre as partes.
Em breve síntese, esse dispositivo faculta às partes a eleição de uma jurisdição nacional distinta da do local da contratação. Ao eleger a jurisdição brasileira, ainda que o contrato seja regido por legislação estrangeira, o procedimento judicial respectivo será regido pelas regras processuais estabelecidas na legislação nacional, conforme interpretação dos arts. 9º, 12 e 14 da LINDB e 22 do CPC. Nesse sentido é também a interpretação do STJ, que em caso concreto envolvendo execução de título extrajudicial, entendeu que caso exista previsão contratual que faculte ao credor a escolha do foro de execução e este opte pela execução dos contratos de empréstimos celebrados no exterior perante a Justiça brasileira, deve haver submissão à forma processual típica de tal via processual, inclusive quanto ao conhecimento e julgamento dos respectivos embargos à execução (STJ, 4ª Turma. REsp 1.966.276-SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 9/4/2024).
O art. 23 elenca as hipóteses em que a competência da Justiça brasileira é exclusiva. Nesses casos, a sentença estrangeira não pode ser homologada, pelo que não produz efeito algum no Brasil.[6] São hipóteses de competência da autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:
a) Conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil
Nesses casos, não há necessidade de que a ação tenha natureza real, ou seja, mesmo que se trate de direito pessoal sobre imóvel situado no Brasil, a ação deverá ser processada e julgada pela justiça brasileira. O art. 12, § 1º, da LINDB também prevê que somente “à autoridade judiciária brasileira compete conhecer das ações relativas a imóveis situados no Brasil”. Essas regras se justificam porque a eventual deliberação de juiz estrangeiro acerca de bem imóvel situado no Brasil implicaria inegável ofensa à autoridade do Poder Judiciário Brasileiro, ferindo, assim, a soberania nacional.
Pode parecer óbvio, mas não custa ressaltar: a competência independe da nacionalidade do proprietário do bem.
b) Em matéria de sucessão hereditária, proceder a inventário de partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional (inc. II)
Como o dispositivo não menciona quais os tipos de bens, entende-se que a regra vale para os bens móveis e imóveis integrantes do espólio. Neste caso, vale ressaltar que são irrelevantes a nacionalidade e o domicílio autor da herança. Ainda, que essa regra não se confunde com a possibilidade de aplicação do direito material estrangeiro quando em benefício de cônjuge ou de filhos brasileiros (art. 10, § 1º, da LINDB), pois, conforme afirmado anteriormente, nesses casos a autoridade brasileira poderá aplicar as normas de direito substancial estrangeiro, mas as normas processuais que irão nortear todo o trâmite processual serão somente aquelas estabelecidas pelo legislador brasileiro.
Essa hipótese também não impede que o STJ homologue eventual divórcio realizado no exterior. Somente a partilha será excluída, já que se houver bens do casal situados no Brasil, eventual deliberação do juízo estrangeiro não terá aplicabilidade no país, cabendo ao STJ homologar a decisão apenas parcialmente.
Há, no entanto, uma exceção que merece ser comentada. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, não obstante o disposto no art. 23, I e III, do CPC e no art. 12, § 1º, da LINDB, autoriza a homologação de sentença estrangeira que, decretando o divórcio, convalida acordo celebrado pelos ex-cônjuges quanto à partilha de bens imóveis situados no Brasil, desde que não viole as regras de direito interno brasileiro (STJ, HDE: 3243 EX 2019/0215670-7, Relator: Ministro Raul Araújo, Data de Julgamento: 11/11/2021, Corte Especial, Data de Publicação: 17/11/2021).
c) Em divórcio, separação judicial ou dissolução de união estável, proceder à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o titular seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional
De acordo com o inciso III do art. 23, a partilha de bens situados no Brasil, também se decorrente de divórcio, separação judicial ou dissolução de união estável, será de competência exclusiva da jurisdição brasileira. A ação para pôr fim ao casamento ou à sociedade conjugal pode até ser julgada por órgão jurisdicional de outro país, mas a partilha dos bens competirá à jurisdição brasileira, ainda que o titular dos bens seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional. A regra vem abarcar entendimento jurisprudencial já consolidado no Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual não se admite a homologação de sentença estrangeira de divórcio quando este, além das disposições referentes ao casamento, contempla partilha de bens situados no Brasil (STJ, SEC 5822/EX, Rel. Min. Eliana Calmon, Corte Especial, j. 20.02.2013)[7].
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”.
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[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v. 1, p. 330.
[2] “[…] A competência (jurisdição) internacional da autoridade brasileira não se esgota pela mera análise dos arts. 88 e 89 do CPC, cujo rol não é exaustivo. Assim, pode haver processos que não se encontram na relação contida nessas normas, e que, não obstante, são passíveis de julgamento no Brasil. Deve-se analisar a existência de interesse da autoridade judiciária brasileira no julgamento da causa, na possibilidade de execução da respectiva sentença (princípio da efetividade) e na concordância, em algumas hipóteses, pelas partes envolvidas, em submeter o litígio à jurisdição nacional (princípio da submissão) […]. A imunidade de jurisdição não representa uma regra que automaticamente deva ser aplicada aos processos judiciais movidos contra um Estado Estrangeiro. Trata-se de um direito que pode, ou não, ser exercido por esse Estado. Assim, não há motivos para que, de plano, seja extinta a presente ação. Justifica-se a citação do Estado Estrangeiro para que, querendo, alegue seu interesse de não se submeter à jurisdição brasileira, demonstrando se tratar, a hipótese, de prática de atos de império que autorizariam a invocação desse princípio. Recurso ordinário conhecido e provido” (STJ, RO 64/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.05.2008).
[3] Art. 12 da LINDB: “É competente a autoridade judiciária brasileira, quando for o réu domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação”.
[4] Promulgada pelo Decreto nº 2.428/1997.
[5] Nesse sentido: “Conflito de competência. Contrato bancário. Financiamento com garantia de alienação fiduciária. Foro contratual. Ação proposta pelo consumidor. Renúncia ao foro do domicílio. Possibilidade. 1. Segundo entendimento desta Corte, nas ações propostas contra o consumidor, a competência pode ser declinada de ofício para o seu domicílio, em face do disposto no art. 101, inciso I, do CDC e no parágrafo único, do art. 112, do CPC. 2. Se a autoria do feito pertence ao consumidor, contudo, permite-se a escolha do foro de eleição contratual, considerando que a norma protetiva, erigida em seu benefício, não o obriga quando puder deduzir sem prejuízo a defesa dos seus interesses fora do seu domicílio. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 3ª Vara Cível de Porto Alegre – RS” (STJ, CC 107.441/SP (2009/0161233-0), Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 22.06.2011).
[6] Nesse sentido: “[…] A exclusividade de jurisdição relativamente a imóveis situados no Brasil, prevista no art. 89, I, do CPC, afasta a homologação de sentença estrangeira na parte em que incluiu bem dessa natureza como ativo conjugal sujeito à partilha” (STJ, SEC 5.302/EX, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, j. 12.05.2011, DJe 07.06.2011).
[7] Lembre-se da exceção apresentada anteriormente. Confira outro precedente no mesmo sentido: “A regra segundo a qual é da jurisdição brasileira, com exclusividade, deliberar sobre a partilha de imóvel situado no Brasil é flexibilizada na hipótese em que a sentença estrangeira é meramente homologatória de acordo firmado entre as partes, que dispuseram livremente sobre o bem. Precedentes (…)” (STJ, AgInt na HDE: 6323 EX 2022/0017136-4, Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 29/11/2023, Corte Especial, Data de Publicação: 04/12/2023).