O Estado moderno, para melhor atingir seu objetivo, que é o bem comum, dividiu seu poder soberano em três: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. A cada Poder corresponde uma função estatal. Assim, ao Legislativo compete a estruturação da ordem jurídica; ao Executivo, a administração; e ao Judiciário, a composição dos litígios nos casos concretos.
À função de compor os litígios, de declarar e realizar o Direito, dá-se o nome de jurisdição (do latim juris dictio, que significa dizer o Direito). Partindo-se de uma visão clássica, a jurisdição pode ser visualizada sob três enfoques distintos: como poder, porquanto emana da soberania do Estado, que assumiu o monopólio de dirimir os conflitos; como função, porque constitui dever do Estado prestar a tutela jurisdicional quando chamado; finalmente, como atividade, uma vez que a jurisdição atua por meio de uma sequência de atos processuais.
Jurisdição, portanto, é o poder, a função e a atividade exercidos e desenvolvidos, respectivamente, por órgãos estatais previstos em lei, com a finalidade de tutelar direitos individuais ou coletivos. Uma vez provocada, atua no sentido de, em caráter definitivo, compor litígios ou simplesmente realizar direitos materiais previamente acertados, o que inclui a função de acautelar os direitos a serem definidos ou realizados, substituindo, para tanto, a vontade das pessoas ou entes envolvidos no conflito. Mesmo quando o Supremo Tribunal Federal exerce o controle concentrado de constitucionalidade por meio de procedimentos – ADI/ADC e ADPF – nos quais não há partes, num plano mediato se pode vislumbrar a tutela preventiva de direitos individuais, embora o objeto da tutela jurisdicional, num plano imediato, seja a própria lei.
1. Características da jurisdição
1.1 Unidade
A jurisdição, dizem os clássicos, é função exclusiva do Poder Judiciário, por intermédio de seus juízes, os quais decidem monocraticamente ou em órgãos colegiados, daí por que se diz que ela é una. A distribuição funcional da jurisdição em órgãos (Justiça Federal, Justiça do Trabalho, varas cíveis, varas criminais, entre outros) tem efeito meramente organizacional. A jurisdição, como ensina Lopes da Costa, será sempre o poder-dever de o Estado declarar e realizar o Direito. Nesse sentido, se diz que a jurisdição é una, ou seja, é função monopolizada dos juízes, os quais integram uma magistratura nacional, não obstante um segmento seja pago pela União (magistratura federal e trabalhista, por exemplo) e outro pelos Estados-membros (magistrados estaduais).
Algumas concepções clássicas, no entanto, precisam ser superadas.
Conquanto o art. 16 estabeleça que a jurisdição é exercida “pelos juízes e pelos tribunais”, o termo correto é juízo, órgão composto, no mínimo, pelo juiz, escrivão e demais auxiliares da justiça (agentes permanentes). Embora não o integrem de forma permanente, a esse órgão, dependendo da natureza da demanda, acorrem o representante do Ministério Público, o Defensor Público, o perito, os advogados (agentes variáveis).
A referência à figura tão somente do juiz decorre até de uma tradição histórica. Nosso direito é romano, posteriormente com influência germânica. Na antiguidade, não se separava o Estado da Religião (Estado Teocrático). O exercício da jurisdição estatal nasceu, portanto, muito impregnado pela religiosidade. Daí advém esse personalismo: a figura do Deus acabou por recair sobre o juiz. Hoje, contudo, o parâmetro é o Estado Democrático de Direito. Não se concebe, nos dias atuais, a edição de uma lei ou sentença por ato de uma única pessoa. É claro que a sentença é prolatada pelo juiz em nome do Estado, mas esse provimento jurisdicional é fruto de um processo, concebido e gestado sob o crivo do contraditório (debate democrático).
A jurisdição, dessa forma, não é um ato solitário dos juízes. A jurisdição é prestada por um órgão que, do ponto de vista subjetivo, é composto por agentes públicos, que recebem vencimentos (juiz, escrivão, promotor público, defensor público e outros), e agentes privados, que recebem honorários (v.g., advogado e perito). Todos esses agentes exercem munus público e estão sujeitos a impedimento e suspeição. A exceção fica por conta dos advogados, sujeitos parciais por excelência.
Observe que o juiz, o escrivão e o promotor de justiça, tal como o advogado, podem variar ao longo do processo. O que importa não é a pessoa, mas a autoridade.
O juiz pode ser substituído (porque se aposentou ou foi promovido), a parte pode trocar de advogado a qualquer tempo. O que não se concebe é processo sem juiz, escrivão, promotor ou advogado.
Quanto ao advogado, pelo menos o do autor, deverá estar presente sempre (salvo em casos específicos, como nas ações propostas perante os Juizados Especiais Cíveis, até o limite de 20 salários mínimos). A exigência decorre do art. 133 da CF/1988, que estabelece ser o advogado “indispensável à administração da justiça”. No processo civil, o advogado do réu não é figura obrigatória. Comparecendo sem advogado, o réu será reputado revel e o processo terá normal prosseguimento. Já no processo penal, é obrigatório que o réu esteja assistido por advogado. Em não havendo advogado constituído pelo réu, ser-lhe-á nomeado defensor. O tratamento diferenciado justifica-se ante a natureza do direito objeto de tutela na esfera penal (a liberdade, garantia fundamental do cidadão).
As afirmações de que a jurisdição é monopólio do Estado e que a função de dizer o Direito é única e exclusiva dos juízes – ilações que podem ser extraídas da literalidade do art. 16 – também estão ultrapassadas. O próprio Estado prevê e reconhece como legítimo o exercício de jurisdição por outros órgãos/agentes não integrantes do Poder Judiciário. Consoante Cassio Scarpinella Bueno:
“[…], não há como perder de vista que, mesmo no Estado brasileiro, a atividade jurisdicional não é exclusiva do Estado-juiz. Também os Poderes Executivo e Legislativo desempenham atividades jurisdicionais em determinados casos, devidamente autorizados desde a Constituição Federal. É o que a doutrina costuma chamar de funções típicas e atípicas do Estado”.[1]
Exemplo do que se está a dizer é o do Senado Federal, órgão que, presidido pelo Presidente do STF, será competente para julgar o presidente da República nos crimes de responsabilidade (art. 86 da CF/1988). Trata-se do processo de impeachment, no qual os senadores, em única e definitiva instância, absolverão ou condenarão o presidente da República. A sentença condenatória se materializará mediante resolução do Senado, a ser proferida pelo voto de 2/3 dos senadores, sendo vedado ao Judiciário alterar o julgamento realizado, sob pena de infringência ao princípio da separação dos poderes.[2] Trata-se, aqui, de exercício de jurisdição pelo Poder Legislativo.
Outro exemplo de exercício de jurisdição por não juízes[3] é a Arbitragem (Lei nº 9.307/1996), na qual um terceiro, escolhido pelos litigantes, decidirá o conflito de interesses, criando a norma individual que regulará o caso concreto.[4]
O Superior Tribunal de Justiça já chegou a considerar a arbitragem como um “equivalente jurisdicional”. Entretanto, o STJ reconhece que a atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem verdadeira natureza jurisdicional,[5] tanto que se admite a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral.
Adverte-se que há posição doutrinária no sentido de que a arbitragem tem natureza meramente contratual. Luiz Guilherme Marinoni, por exemplo, entende que não há como equiparar a jurisdição com a atividade de árbitro e que aquela só pode ser exercida “por uma pessoa investida na autoridade de juiz, após concurso público de provas e títulos”.[6]
É possível o controle judicial da sentença arbitral, mas apenas em relação aos requisitos de validade (arts. 32 e 33 da Lei nº 9.307/1996) e mesmo assim dentro do prazo de 90 dias após a notificação da respectiva sentença, parcial ou final, ou da decisão do pedido de esclarecimentos, findo o qual a decisão se tornará definitiva e, portanto, acobertada pela coisa julgada material. Dentre os requisitos de validade está, inclusive, a observância ao princípio da imparcialidade do árbitro (art. 21, § 2º, c/c o art. 32, VIII, da Lei nº 9.307/1996), o que reforça o caráter jurisdicional da arbitragem, porquanto também é uma das características inerentes à jurisdição. Vale destacar que, no âmbito trabalhista, a arbitragem é consagrada em nível constitucional (art. 114, § 1º, da CF/1988).
Como exemplo de órgão que também exerce a jurisdição, igualmente podemos citar a Justiça Desportiva, órgão administrativo com atribuições para julgar questões relacionadas à disciplina e competições desportivas (art. 217 da CF/1988). Nessas hipóteses, o acesso ao Judiciário só será possível após o exaurimento da via administrativa (art. 217, § 1º).
O Tribunal de Contas, órgão ligado ao Legislativo e com competência para o julgamento das contas dos administradores públicos também serve de exemplo de órgão que exerce função jurisdicional.
Embora o Senado Federal, o tribunal arbitral e o tribunal desportivo não sejam órgãos jurisdicionais no aspecto técnico do termo, porquanto as decisões emanadas desses órgãos sujeitam-se ao controle jurisdicional, não há como negar que a Justiça Desportiva e o Tribunal de Contas exercem função jurisdicional, na medida em que acertam qual o Direito aplicável àqueles conflitos que lhes competem decidir.
Como meios alternativos de pacificação social – que atuam ao lado da jurisdição na pacificação social – pode-se citar a autotutela (solução pela imposição da vontade de um dos interessados), a autocomposição (que engloba a remissão, a submissão, a transação e a renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação), a mediação e a conciliação.
Como se vê, embora falemos em unidade e monopólio da jurisdição, a função de aplicar o direito ao caso concreto, de solucionar os conflitos de interesse cada vez mais está sendo diluída, não mais constituindo atributo exclusivo do Poder Judiciário. Basta evidenciar que o próprio Código prestigia os denominados meios alternativos de solução de litígios e cada vez mais compete aos notários e registradores funções antes exclusivamente reservadas ao Judiciário, como, por exemplo, a separação judicial, o divórcio e a declaração da usucapião, procedimentos esses que, obedecidos certos requisitos, podem ser realizados em cartórios extrajudiciais. Assim, é com bastante ressalva que se deve afirmar ser a Jurisdição monopólio do Estado. Monopólio sempre foi visto como algo maléfico. Em se tratando do Judiciário, é concebido como retardador da prestação jurisdicional, daí o esforço na busca por outros meios igualmente seguros para prevenir e compor litígios.
1.2 Secundariedade
A jurisdição é o derradeiro recurso (ultima ratio), a última trincheira na busca da solução dos conflitos. O normal e esperado é que o Direito seja realizado independentemente da atuação da jurisdição, sobretudo em se tratando de direitos patrimoniais. Em geral, o patrão paga os salários sem que seja acionado para tanto; o locatário paga o aluguel sem que o locador tenha que recorrer à Justiça para fazer valer seu direito; o pai, uma vez separado de sua mulher, paga alimentos ao filho, independentemente de qualquer ação de alimentos. Prevalece, portanto, a observância ao dever decorrente da lei, o convencionado pelas partes, o ato jurídico perfeito. Quando se descumpre o dever jurídico oriundo de tais atos, o que se espera é que as partes envolvidas busquem os meios para solucionar o litígio de forma consensual. Nessa perspectiva, a secundariedade constitui o reverso da unidade. Segundo a característica da unidade, a jurisdição constitui um monopólio do Judiciário. Por outro lado, de acordo com a característica da secundariedade, a função jurisdicional é secundária no sentido de que só atuará em último caso, quando esgotadas todas as possibilidades de resolução do conflito instaurado.
Fato é que a jurisdição não é tão una, tão monopolizada pelo Judiciário quanto se prega na doutrina, uma vez que, a cada dia o legislador compete funções típicas do Judiciário a órgãos estranhos a esse poder e cria meios de solução de conflitos sem ter que recorrer ao Estado-juízo. Igualmente, a provocação da jurisdição não se dá de forma tão secundária e alternativa – como a última trincheira na defesa dos direitos subjetivos – como se almeja. O ideal é que se cumprisse a lei, que se respeitasse os limites dos direitos de cada um, bem os atos jurídicos em geral. Ideal ainda seria se, ante a ocorrência de conflitos, se buscasse os meios consensuais para a respectiva solução. Contudo, mercê da nossa cultura demandista, tal como ocorre nos Estados Unidos da América do Norte, o que se verifica no cotidiano forense é uma enxurrada cada vez maior de processos, sem que qualquer medida extrajudicial fosse adotada na tentativa de solucionar o impasse. Vai-se ao Judiciário, por exemplo, para obter extratos bancários sem que antes o pleito tenha sido submetido à instituição financeira.
Ora, a propositura de uma demanda almejando resultados que poderiam ser obtidos sem a intervenção judicial contraria o caráter secundário da jurisdição, revelando nítida falta de interesse de agir, a ensejar a extinção do processo sem resolução do mérito. Ocorre que os julgadores têm levado a inafastabilidade às últimas consequências, não se exigindo a mínima prova de que se buscou a solução para o impasse junto à pessoa ou órgão responsável pela satisfação do direito almejado.
De minha parte, quando no exercício da judicatura, não permitia esse abuso na utilização da via judiciária. Veja, a respeito, julgamento proferido em ação de exibição de documentos, de minha relatoria, na qual, além de não ter comprovado diligência prévia na tentativa de obter a documentação pretendida, o autor sequer indica qual a utilidade dos documentos:
“Ação de exibição de documentos – interesse de agir – inexistência – extinção do feito sem resolução do mérito. – O interesse de agir trata-se de condição da ação que pode ser compreendida sob dois enfoques: a necessidade/utilidade do provimento jurisdicional pleiteado e a adequação do procedimento escolhido para se atingir tal fim. – O Poder Judiciário não está a serviço de pretensões inúteis ou imotivadas, que não apresentariam ganho algum para a parte. Aceitar o ajuizamento de ações sem qualquer interesse jurídico específico é incentivar o demandismo desenfreado, abarrotando desnecessariamente as prateleiras do Judiciário, que já recebe a pecha de moroso e inoperante. Destarte, uma vez que o autor não indica qual seria o objetivo da pretensão formulada, é de se reconhecer a falta de interesse processual para o feito, o que acarreta a extinção do processo sem resolução do mérito (art. 267, VI, do CPC)” (TJMG, AC 1.0106.07.025729-5/001, 18ª Câmara Cível, Rel. Des. Elpídio Donizetti, j. 23.10.2007, data da publicação 12.11.2007).
Essa compreensão vem sendo adotada atualmente pelo STJ:
“Agravo interno no agravo em recurso especial. Processual civil. Ação de exibição de documentos. Interesse de agir. Recusa na via administrativa não comprovada. Ausência de resistência da parte requerida. Honorários advocatícios. Princípio da causalidade. Ônus da parte autora. Agravo interno desprovido. 1. Segundo o entendimento desta Corte, ‘nas ações de exibição de documentos, a ausência de prévio requerimento administrativo denota a ausência de interesse de agir’ (AgInt no AREsp 1.403.993/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe de 29.3.2019). 2. No caso, o Tribunal de origem afirmou que não ficou demonstrada a recusa da parte ré ao fornecimento dos documentos pretendidos, ensejando o não conhecimento do pedido pela ausência de interesse processual. 3. A jurisprudência desta Corte Superior firmou-se no sentido de que, em conformidade com os princípios da sucumbência e da causalidade, são devidos honorários advocatícios em ações cautelares de exibição de documentos e produção antecipada de provas, desde que demonstrada a recusa administrativa e configurada a resistência à pretensão autoral, o que não ocorreu na hipótese. Precedentes. 4. Agravo interno a que se nega provimento” (STJ, AgInt no AREsp 1517671/SE, Rel. Min. Raul Araújo, j. 29.10.2019).
Essa litigiosidade desenfreada e incondicionada não pode continuar. Penso que deveríamos caminhar no sentido de maior condicionamento de acesso à tutela jurisdicional, colocando-a em seu devido lugar, como a última e definitiva alternativa na solução dos litígios. Tal já ocorre com algumas demandas, como a ação de Habeas Data, para a qual se exige prévio esgotamento da via administrativa (art. 8º da Lei nº 9.507/1997), e as ações envolvendo direito desportivo, que devem ser analisadas primeiramente pela Justiça Desportiva, órgão administrativo.
Note-se que no âmbito do STF, pelo menos no que se refere à concessão de benefício previdenciário, a ideia de secundariedade da jurisdição vem sendo alargada, de modo a permitir o acionamento do Poder Judiciário somente depois de formalização de prévio requerimento administrativo à autarquia federal (INSS) (RE nº 631.240/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 03.09.2014). Tal entendimento não tem aplicabilidade se, para a Administração, for notório e reiteradamente contrário à postulação do segurado.
Nem todas as relações jurídicas, contudo, comportam solução voluntária, isto é, sem a atuação jurisdicional. Tal ocorre “naquelas pretensões relativas a direitos e interesses regidos por normas de extrema indisponibilidade”,[7] como no caso das normas penais (que versam sobre direito à liberdade), com exceção das hipóteses de transação penal prevista na Lei nº 9.099/1995 e de algumas normas civis, notadamente as de cunho não patrimonial. Não se admite, por exemplo, a destituição do poder familiar, a interdição ou a rescisão de sentença de mérito sem pronunciamento judicial nesse sentido. Fala-se, assim, em jurisdição obrigatória, necessária, primária ou indispensável. Nesses casos, a atuação do Estado não é secundária, mas condição indispensável à obtenção dos resultados desejados.
Fora das hipóteses de jurisdição necessária, apenas quando persistir a situação litigiosa é que o Estado deverá atuar, substituindo, com atividade sua, a vontade daqueles diretamente envolvidos no conflito. É assim que deve ser vista a secundariedade da função jurisdicional.
A propósito, pensando no fato de que a ausência de litigiosidade já é capaz de permitir a solução na via administrativa, em 2024 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 571/2024 para admitir a lavratura de divórcio consensual mesmo quando existente filho incapaz.
Mais adiante abordaremos o assunto de forma pormenorizada, mas desde já adiantamos que para a realização de divórcio em cartório a legislação (CPC) exige, além do consenso, a inexistência de filhos menores ou incapazes. Ocorre que mesmo com essa previsão, diversos Estados brasileiros já admitiam a realização de divórcio extrajudicial com a presença de filhos menores ou incapazes. A exigência para tal procedimento é que as questões relativas à guarda, ao regime de visitas (convivência) e aos alimentos tenham sido resolvidas judicialmente e previamente, com o auxílio de advogado. Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso, Goiás, Acre e Maranhão já adotavam esse modelo de desjudicialização. A título de exemplo, o Código de Normas do Foro Extrajudicial do TJ/PR, publicado em março de 2023, por meio do provimento CGJ 318/23, autorizou os cartórios de notas a realizar divórcios, mesmo quando estão envolvidos filhos menores. Em Goiás também há disposição semelhante no Código de Normas.
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 571/2024, consolidou essa possibilidade. Como não há prejuízo para os filhos menores, pois as questões atinentes a alimentos, guarda e convivência já deverão estar decididas, não vislumbramos qualquer empecilho para a dissolução extrajudicial. A desburocratização se faz, dentre outras formas, com a desjudicialização. Além disso, considerando o princípio da intervenção mínima do Estado nas relações conjugais, nada mais coerente que a permanência ou não do vínculo seja amplamente facilitada. Vale registrar que existe um projeto de lei (PL 731/2021), tramitando da Câmara dos Deputados, a fim de permitir divórcio e dissolução de união estável extrajudicial nos casos em que o casal possua filhos incapazes. De toda sorte, os Estados estão aplicando em sua inteireza a nova Resolução do CNJ.
1.3 Substitutividade
De um modo geral, as relações jurídicas são formadas, geram seus efeitos e extinguem-se sem dar origem a litígios. Quando surge o litígio, as partes podem compô-lo de diversas formas, sem recorrer ou aguardar o pronunciamento do Estado-juízo. A transação (art. 840 do CC), a conciliação, a mediação e o juízo arbitral[8] são instrumentos extrajudiciais adequados para a composição dos litígios. Apenas quando frustradas as tentativas extrajudiciais de solução dos conflitos é que o Estado deveria ser chamado a atuar[9].
Como o Estado é um terceiro estranho ao conflito, ao exercer a jurisdição, estará ele substituindo, com atividade sua, a vontade daqueles diretamente envolvidos na relação de direito material, os quais obrigatoriamente se sujeitarão ao que restar decidido pelo Estado-juízo. É nesse sentido que se fala em substitutividade da jurisdição. Em outras palavras, as partes poderiam, cada uma, cumprir o seu dever, evitando o conflito. Surgido o conflito, poderiam, per si, buscar uma forma de resolvê-lo. Em não agindo assim, a última possibilidade consiste em bater às portas do Judiciário em busca de uma tutela jurisdicional. Uma vez provocada a jurisdição, instaurado e desenvolvido o processo, o Estado-juiz editará a sentença, uma verdadeira lei regedora do caso concreto, a qual uma vez imutabilizada pela coisa julgada, substituirá completamente a vontade das partes. A solução dada, por exemplo, julgando improcedente o pedido formulado na petição inicial, nem de longe integrava a vontade do autor, mas ele terá que se submeter ao que fora decidido. Goste ou não as partes do que restou decidido, terão que obedecer ao comando da sentença. Esse é o sentido de substitutividade da jurisdição.
Em razão da substitutividade, a jurisdição é espécie de heterocomposição dos conflitos, gênero que se contrapõe à autocomposição (solução do litígio pelos próprios sujeitos da relação material, como se dá na conciliação e transação), que tem como pressuposto o respeito integral à autonomia da vontade.
Excepcionalmente, pelo menos do ponto de vista imediato e direto, não há substitutividade na execução indireta, realizada por meios de coerção que forçam o próprio devedor a cumprir a obrigação. É o caso da execução de pensão alimentícia com prisão civil (art. 19 da Lei nº 5.478/1968).
2.4 Imparcialidade
Para ser legítimo o exercício da jurisdição, é imprescindível que o Estado-juízo – ou melhor, aqueles agentes que, em decorrência da lei, integrarão o órgão jurisdicional (juiz, escrivão, oficial de justiça, contador) – atuem com imparcialidade. Do advogado, conquanto indispensável (art. 133 da CF/1988), não se exige imparcialidade, ao contrário dos demais agentes. No processo judicial, a postulação do advogado – categoria na qual se incluem os defensores públicos, tem por objetivo convencer o julgador no sentido de proferir decisão favorável ao seu constituinte (art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.906/1994). Quanto ao representante do Ministério Público (promotor de justiça e procurador da república, entre outros), embora possa atuar como parte, sua liberdade de atuação não se assemelha à do advogado, isso porque não há interesse de constituinte a ser defendido, e sim a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CF).
No exercício da jurisdição deve predominar o interesse geral de administração da justiça, devendo os agentes estatais zelar para que as partes tenham igual tratamento e igual oportunidade de participar na formação do convencimento daquele que criará a norma que passará a reger o conflito de interesses. É nesse sentido que se diz que a jurisdição é atividade imparcial do Estado. Deve-se ressalvar que não se trata de característica exclusiva da função jurisdição. Também os integrantes de comissão processante, incumbida de apurar e julgar ou somente apurar faltas disciplinares no âmbito da Administração Pública devem se pautar segundo o princípio da imparcialidade. O mesmo princípio se aplica às comissões de licitação. Resumindo: a imparcialidade constitui característica de toda a atividade jurisdicional; mas há atividade típica da Administração para a qual também se exige o requisito da imparcialidade.
2.5 Criatividade
Agindo em substituição à vontade dos conflitantes, o Estado, ao final do processo, criará uma norma individual que passará a regular o caso concreto, inovando a ordem jurídica. A essa norma dá-se o nome de sentença (quando a decisão é prolatada por juiz singular) ou acórdão (quando a decisão emana de órgão colegiado). Não é tecnicamente preciso, conquanto usual, afirmar que o juiz declara o Direito, que o juiz simplesmente subsome as normas aos fatos. A tutela jurisdicional vai além, inovando o mundo jurídico, criando e não apenas reconhecendo algo já existente. Nos dizeres de Mauro Cappelletti:
“A resposta dada neste ensaio à indagação de se a tarefa do juiz é interpretar ou criar o direito, posiciona-se no sentido de que o juiz, inevitavelmente, reúne-se em si uma e outra função, mesmo no caso – que constitui, quando muito, regra não sem muitas exceções – em que seja obrigado a aplicar lei preexistente. Nem poderia ser de outro modo, pois a interpretação sempre implica um certo grau de discricionariedade e escolha e, portanto, de criatividade, um grau que é particularmente elevado em alguns domínios, como a justiça constitucional e a proteção judiciária de direitos sociais e interesses difusos”.[10]
O processo de criação pelo Estado-juízo, portanto, não consiste pura e simplesmente na aplicação das leis (normas gerais e abstratas) ao caso concreto. Exige-se do magistrado postura mais ativa, cabendo-lhe apreender as especificidades de cada caso, a fim de encontrar a solução consentânea com os preceitos legais e constitucionais. É, portanto, dever do magistrado cotejar o texto da lei com a Constituição, valendo-se dos recursos de hermenêutica constitucional para extrair da legislação aplicável ao caso concreto o conceito de justiça mais adequado à tutela dos interesses postos em juízo.
A sentença ou acórdão, em regra, conterá três tópicos: relatório, fundamentação e dispositivo (art. 489, I, II e III).
Primeiramente, o juiz qualificará as partes e procederá ao resumo do pedido, da resposta do réu e das principais ocorrências havidas no andamento do processo (relatório). Em seguida, o juiz analisará as questões fáticas e interpretará e valorará o conjunto normativo aplicável ao caso narrado (o juiz julgará a própria lei). Dessa atividade, o juiz extrairá os fundamentos que justificarão sua decisão. Esses fundamentos constituem o que se denomina ratio decidendi e servirão de precedentes para julgamentos futuros, para edição de súmulas de tribunais e para o imediato julgamento de causas repetitivas.
Por fim, já na parte dispositiva da sentença ou acórdão, o juiz proferirá, com base na ratio decidendi, a norma individualizada do caso concreto, ou seja, a solução daquele conflito.
Houve um tempo em que não cabia à jurisdição estabelecer precedentes para casos futuros. As súmulas da jurisprudência serviam apenas de orientação para os julgadores do próprio tribunal e principalmente para os de órgãos de grau inferior àquele que fixou o precedente. Contudo, desde a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004, o Supremo Tribunal Federal, por meios das súmulas vinculantes, vem criando normas abstratas sobre determinados assuntos. Também por meio do controle concentrado de constitucionalidade não se nega que o STF, à guisa de interpretação da Constituição Federal, pode vir a criar verdadeiras normas jurídicas.
É importante destacar, por fim, que nem sempre haverá substrato legal específico sobre determinada matéria deduzida em juízo, do qual possa o juiz retirar os fundamentos (ratio decidendi) da norma individualizada a ser criada. É o que ocorre, por exemplo, em questões envolvendo o direito de greve dos funcionários públicos.[11] Não obstante a lacuna legal, o Judiciário é obrigado a decidir tais conflitos, devendo extrair os respectivos fundamentos de outras fontes do direito (analogia, costume, princípios gerais – art. 4º da LINDB), o que evidencia o caráter criativo da Jurisdição. Quando assim age, por óbvio, se cria o Direito, e não simplesmente o declara.
Com o advento do CPC/2015 inegável é a função criadora ou constitutiva do Direito pelos tribunais, principalmente pelos tribunais superiores. Os julgamentos em sede de recursos repetitivos, IRDR (este julgado originariamente pelos tribunais de justiça e pelos tribunais regionais federais[12]) e do IAC constituem precedentes que devem ser obrigatoriamente aplicados.
Agora, à pergunta “juízes legisladores?”, que dá título ao livro de Mauro Cappelletti, pode-se responder: sim, ministros legisladores.
2.6 Inércia
A jurisdição é atividade equidistante e desinteressada do conflito e, por isso, num primeiro momento, só age se provocada pelas partes, por intermédio de seus advogados (art. 2º). Evidentemente, uma vez provocada, age por impulso oficial, de ofício. Além da imparcialidade que se quer preservar, a característica, também erigida a princípio da jurisdição, tem por objetivo evitar a excessiva intromissão em assuntos que dizem respeito somente a pessoas. Já pensou se fosse dado ao juiz o poder de interferir na vida de um casal, desenvolvendo inclusive investigação sigilosa, para verificar se há alguma causa que possa justificar o divórcio? Possivelmente poucos estariam casados. Que Deus proteja nossa esfera íntima dos tentáculos desse leviatã.
A própria lei prevê exceções à regra da inércia da jurisdição. Mesmo sem provocação, pode o juiz decretar a falência de empresa sob regime de recuperação judicial (arts. 73, II, III e IV, da Lei nº 11.101/2005); a execução trabalhista inicia-se por ato do juiz (art. 878 da CLT), desde que as partes não estejam representadas por advogado, assim como a execução penal (art. 105 da Lei de Execução Penal); o habeas corpus também pode ser concedido de ofício na hipótese de coação ilegal (art. 654, § 2º, do CPP). Como se vê, a atuação é permitida em casos de interesse social ou em defesa de direitos indisponíveis. A regra é a inércia da jurisdição. O juiz só vai atuar se provocado, assim mesmo se essa provação vier na forma legal, isto é, em se instaurando o processo por meio de uma petição apta (art. 319) a provocar a função jurisdicional do Estado.
2.7 Definitividade
Traço marcante e distintivo da jurisdição em relação às demais funções estatais (administrativa e executiva) e meios de pacificação social é a aptidão para a definitividade, quer dizer, a suscetibilidade para se tornar imutável. A essa característica de definitividade da jurisdição dá-se o nome de coisa julgada, instituto que será estudado mais adiante.
Por ora, vale a menção de que a estabilidade que se confere ao provimento jurisdicional varia conforme sua natureza. As decisões de mérito (aquelas que julgam o cerne da pretensão formulada, criando a norma individualizada do caso concreto) são as que gozam do mais elevado grau de estabilidade conferida pela ordem jurídica: a coisa julgada material, garantia fundamental do cidadão (art. 5º, XXXVI, da CF/1988). O próprio ordenamento jurídico, no entanto, prevê hipóteses de relativização da coisa julgada material. É o caso da Ação Rescisória, da querela nullitatis e da inexigibilidade da sentença, temas que também serão abordados neste livro.
Já com relação aos provimentos jurisdicionais que não decidem o mérito (sentenças terminativas), a proteção outorgada é menos intensa. Tais decisões não impedem a repropositura da demanda, podendo o juiz decidir contrariamente ao que decidido na primeira sentença. A hipótese, aqui, é de coisa julgada formal (e não material), que obsta a rediscussão do tema tão somente naquele processo em que proferida a decisão. Não se pode olvidar, contudo, que “por menor que seja o grau de imunidade concedido a um ato jurisdicional, somente o Poder Judiciário é que poderá neutralizá-lo ou desconstituí-lo”,[13] daí se dizer ser a Jurisdição dotada de definitividade.
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”
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[1] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1, p. 246-247.
[2] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 420.
[3] Atribuindo caráter jurisdicional à arbitragem: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2007; DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 11. ed. Salvador: JusPodivm, 2009.
[4] Nos termos do art. 13 da Lei de Arbitragem, “pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha confiança das partes”. Não se exige, portanto, sequer vínculo com a Administração Pública.
[5] STJ, CC 111.230/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 08.05.2013. Informativo nº 522. No mesmo sentido: 2ª Seção, CC 185.702/DF, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22.06.2022, DJe 30.06.2022.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo – curso de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 154.
[7] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 38.
[8] O juízo arbitral pode ser instituído pela convenção de arbitragem (Lei nº 9.307/1996), ou na forma do art. 24 da Lei nº 9.099/1995.
[9] No âmbito do direito constitucional à saúde, a utilização da jurisdição como forma de resolução do conflito é recomendada apenas em último caso. Embora não se trate de uma etapa obrigatória, a utilização de meios extrajudiciais de solução de conflitos é constantemente fomentada pelo Poder Judiciário, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça, que, por meio da Recomendação n. 100, de 16 de junho de 2021, recomenda aos magistrados com atuação nas demandas envolvendo o direito à saúde que priorizem, sempre que possível, a solução consensual da controvérsia, por meio do uso da negociação, da conciliação ou da mediação.
[10] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores, apud FERNANDES, Iara de Toledo. A efetividade das normas constitucionais. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/Congresso/Tese1.doc>. Acesso em: 18 set. 2014.
[11] Diante da ausência de lei regulamentadora do direito de greve dos servidores públicos, o STF vem determinando a aplicação, no que couber, da Lei nº 7.783/1989, que dispõe sobre o exercício do direito de greve da iniciativa privada (nesse sentido: Mandados de Injunção 670/ES, 708/DF e 712/PA).
[12] O IRDR tem cabimento também no STJ, nos casos de competência originária ou em sede de recurso ordinário, conforme jurisprudência da Corte (AgInt da Pet 11.838/MS, Corte Especial, por maioria, DJe 10.09.2019).
[13] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 314-315.