Uma das maiores novidades trazidas pelo CPC/2015 é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, conhecido pela sigla IRDR, que se inclui no rol dos precedentes vinculantes (art. 927, III).
Segundo a exposição de motivos elaborada pela Comissão de Juristas do Senado, trata-se de mecanismo concebido para a “identificação de processos que contenham a mesma questão de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdição, para decisão conjunta”. Identificar, por meio do procedimento denominado IRDR, fixar a tese jurídica e, se for o caso, julgar os recursos e causas originárias em curso no tribunal.
Nos termos da exposição de motivos, o IRDR constituiria um procedimento-modelo, isto é, teria por objetivo a definição de tese jurídica, a ser aplicada pelos juízes de primeiro grau e no próprio tribunal, ao julgar futuros recursos e causas originárias. Nessa perspectiva, a instauração do incidente não pressupunha a existência de recursos no tribunal.
Entretanto, o texto final do Código atual destoou da exposição feita pela Comissão do Anteprojeto. O parágrafo único do art. 978 permite inferir que não se admitiria padronização preventiva, ou seja, o IRDR seria instaurado incidentalmente em julgamento de recurso, remessa necessária ou processo de competência originária, perante os Tribunais de Justiça ou Tribunal Regional Federal. Além do risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, deveria haver efetiva repetição de processos (art. 976, I);[1] não bastando apenas o prognóstico de dissenso. A incidência da repetição poderia estar ocorrendo no primeiro, no segundo ou em ambos os graus de jurisdição, mas, para instauração do incidente, pelo menos um feito (num sentido lato) versando a mesma questão de direito deveria estar tramitando no tribunal de segundo grau.
Assim, de acordo com o texto sancionado, não seria permitida a padronização preventiva; o incidente não constituiria um procedimento modelo (destinado a, em abstrato, fixar tese jurídica), mas sim uma causa piloto, ou seja, os processos em curso no tribunal seriam afetados para julgamento conjunto e, a partir desse julgamento, aos moldes do que ocorre com os julgamentos de RE e REsp repetitivos, seria fixada a tese jurídica.
Evidente que se a tese jurídica a ser assentada já constituir objeto de recurso extraordinário ou especial afetado para julgamento na modalidade repetitiva, incabível é o IRDR (art. 976, § 4º), uma vez que o que restar decidido pelo tribunal superior vinculará tribunais e juízos de primeiro grau.
O dissenso sobre a necessidade ou não de prévia repetição de processos no tribunal e, consequentemente, do objeto do incidente, instaurou-se na doutrina. No IRDR, o tribunal fixaria a tese e julgaria os casos concretos, na linha do que aparentemente dispõe a lei, ou restringir-se-ia a fixar a tese em abstrato, sem a resolução dos processos no tribunal?
Essa indagação leva a outra, no que respeita ao requisito da repetição de processos no tribunal. Pode o incidente ser instaurado havendo repetição somente no primeiro grau de jurisdição?
Se a opção for pela causa piloto, a definição da tese jurídica será bem mais demorada. Até que os processos tramitem no primeiro grau de jurisdição e cheguem ao tribunal, muitos anos vão se passar. Ao contrário, se a opção for pelo procedimento modelo, tão logo a repetição comece a pipocar no juízo de primeiro grau (justiça estadual, federal ou juizados especiais), ainda que não haja qualquer causa sobre a questão no tribunal, um legitimado – menos o relator, evidentemente – pode suscitar o incidente (juiz, partes, Ministério Público ou Defensoria Pública).
No procedimento modelo há processos em curso no Judiciário, embora não necessariamente no tribunal; pode ser apenas no primeiro grau de jurisdição. Assim, não me afigura pertinente a observação daqueles que “se preocupam” com o fato de o aplicador da lei legislar. Não se trata disso. De uma forma ou de outra (haja ou não causa no tribunal), o IRDR será julgado e a tese definida a partir de casos concretos, ainda que em curso somente no primeiro grau de jurisdição.
Debrucei sobre essa questão. Verifiquei que a jurisprudência iniciou sua marcha no sentido da adoção do procedimento ou causa modelo. Os acórdãos proferidos no IRDR nº 0804575-80.2016.4.05.0000 – TRF-5ª Região e no IRDR nº 0023205-97.2016.8.19.0000 – TJRJ, para citar apenas dois julgados mais ilustrativos. Na linha adotada, a instauração não pressupõe a existência de causas no tribunal. Mediante ofício do juiz ou petição das partes, do MP ou da DP, preenchidos os demais requisitos, pode-se instaurar o IRDR com o simples objetivo de definir o modelo a ser seguido nas causas que serviram para demonstrar a repetição e nas que eventualmente forem intentadas na área de jurisdição do tribunal.
Os enunciados, diante da proliferação de órgãos que os emite, não têm ajudado muito. Na questão em debate, o FPPC puxa para o lado da causa piloto e a Enfam para o lado do procedimento modelo:
- “A instauração do incidente pressupõe a existência de processo pendente no respectivo tribunal” (Enunciado nº 344 do FPPC). Na mesma linha, o Enunciado 342 do mesmo fórum: “O incidente de resolução de demandas repetitivas aplica-se ao recurso, a remessa necessária ou a qualquer causa de competência originária”.
- “A instauração do IRDR não pressupõe a existência de processo pendente no respectivo tribunal” (Enunciado nº 22 da ENFAM)
Relendo o parágrafo único do art. 978, em passagem alguma há afirmação de que, obrigatoriamente, deva haver causa versando sobre idêntica questão no tribunal. O caso é um pouco diferente do que se passa com os Recursos Extraordinários e Recursos Especiais repetitivos. Nos recursos repetitivos, o legislador criou um procedimento de recursos pilotos, com previsão de escolha dos recursos representativos da controvérsia (art. 1.036, § 1º).
Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça, em 2019, definiu como condicionante para o cabimento do IRDR a pendência de julgamento, no tribunal, de uma causa recursal ou originária. Assim, “se já encerrado o julgamento, não caberá mais a instauração do IRDR, senão em outra causa pendente; mas não naquela que já foi julgada” (STJ, AREsp 1.470.017/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, 2ª Turma, j. 15.10.2019. DJe19.10.2019).
A 2ª Turma do STJ, novamente em 2024, foi ainda mais enfática, afirmando que o CPC/2015 adotou a sistemática da causa-piloto, e não da causa-modelo para admissibilidade do IRDR. Para facilitar, vejamos o que houve no caso concreto (REsp 2.023.892/AP, j. 05.03.2024): uma juíza de Vara Cível do Amapá percebeu a repetição de diversos processuais judiciais nos quais os servidores públicos do Estado pleiteavam a concessão de adicional de insalubridade previsto na legislação estadual. Embora existisse lei, ela não disciplinava sobre os percentuais, o que fez os servidores pleitearem a aplicação analógica da Lei Federal 8.112/1990. A referida juíza suscitou a instauração do incidente, justificando que havia divergência de entendimentos entre juízes vinculados ao TJAP. O Tribunal, por sua vez, admitiu e julgou o incidente, estabelecendo a seguinte tese: “Enquanto não houver regulamentação integral aos dispositivos da Lei Estadual nº 0066/1993 para fins de pagamento do adicional de insalubridade aos servidores públicos do Amapá, devem ser aplicados, por analogia, os percentuais previstos na Lei Estadual nº 2.231, de 27/09/2017, que institui o Plano de Cargos, Carreira e Remuneração dos Servidores Técnica-Administrativos Efetivos da Universidade do Estado do Amapá – UEAP, cujos efeitos contam a partir da data de publicação deste acórdão”.
Ocorre que o caso foi levado ao Superior Tribunal de Justiça, que rechaçou a providência adotada pelo TJAP – e pela juíza –, argumentando que houve violação ao art. 978 do CPC, já que, segundo a Corte Cidadã, o CPC estabeleceu, como regra, a sistemática da causa-piloto para o julgamento do IRDR. Justamente por isso não basta a existência de múltiplos processos em primeiro grau; é imprescindível que o IRDR seja instaurado a partir de uma causa concreta que já esteva no Tribunal ao qual pertence o órgão competente para julgá-lo.
Ao contrário do STJ, entendo que a instauração não pressupõe a existência de recursos, remessa necessária ou causas originárias versando sobre a questão a ser assentada pelo tribunal. Pode até haver causa versando idêntica questão de direito no tribunal (mas não obrigatoriamente), hipótese em que legitima o relator a proceder à suscitação do incidente. Em havendo causa versando sobre a mesma questão de direito, o órgão competente para julgar o incidente também julgará as causas em curso no tribunal; esse procedimento confere celeridade, não suprime grau de jurisdição e não compromete qualquer garantia inerente ao devido processo legal. O IRDR deveria ser admitido quando fosse identificada a repetição de causas fundadas na mesma questão de direito, pouco importando a preexistência de causa pendente no Tribunal. De toda sorte, reforço que o STJ não concorda com essa tese. Para que fique claro:
Sistemática da causa-modelo | Sistemática da causa-piloto |
O IRDR é um procedimento/mecanismo autônomo destinado a dirimir questão jurídica versada em uma multiplicidade de processos. Para a sua instauração não há necessidade de que um caso concreto esteja tramitando no Tribunal, bastando que exista uma multiplicidade de processos e a imprescindibilidade de uniformização de futuras decisões. | O IRDR é um incidente que só pode ser implementado se houver uma causa concreta pendente (uma causa-piloto), já em trâmite no Tribunal. Essa causa será utilizada como “piloto” para que o Tribunal fixe uma tese abstrata que será aplicável a outros casos semelhantes. O STJ entende que o CPC adotou, como regra, a sistemática da causa-piloto, que é excepcionada apenas (i) quando houver desistência das partes que tiveram seus processos selecionados como representativos da controvérsia multitudinária, nos termos do art. 976, § 1º do CPC; (ii) b) quando se tratar de pedido de revisão da tese jurídica fixada no IRDR. |
Independentemente da sistemática, o fato é que o IRDR tem por fim evitar (i) a eternização de discussões sobre teses jurídicas, o que gera ganhos em termos de celeridade; (ii) discrepâncias, o que provoca quebra da isonomia dos litigantes e, por conseguinte, insegurança jurídica. O novel instituto foi inspirado no procedimento-modelo (Musterverfahren) do sistema processual alemão. A rigor não é correto falar em pretensões isomórficas (semelhantes), uma vez que o isomorfismo recai tão somente sobre a questão de direito e, como sabido, também os fatos constituem substrato da pretensão.
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”.
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[1] “Não existe limitação de matérias de direito passíveis de gerar a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas e, por isso, não é admissível qualquer interpretação que, por tal fundamento, restrinja o seu cabimento” (Enunciado nº 88, FPPC).