O Recurso Especial (REsp) é um instrumento processual destinado a uniformizar a interpretação da lei federal em todo o território nacional. Previsto no art. 105, inciso III, da Constituição Federal de 1988, seu julgamento compete ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embora a base constitucional e legal seja una, a aplicação e os contornos do REsp apresentam nuances e peculiaridades quando analisados sob a ótica das esferas cível e criminal.
Em relação à base legal, vale registrar que a redação original do Código de Processo Penal (art. 638) fazia referência apenas ao Recurso Extraordinário, o que se justifica pelo fato de que, na época da sua entrada em vigor – 1º de janeiro de 1942 -, sequer existia o STJ. A Lei n. 13.964/2019 conferiu nova redação a essa dispositivo, passando a dispor da seguinte forma:
“O recurso extraordinário e o recurso especial serão processados e julgados no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça na forma estabelecida por leis especiais, pela lei processual civil e pelos respectivos regimentos internos”.
Portanto, o Código de Processo Civil é aplicável tanto ao REsp interposto em decorrência de decisão de natureza cível quanto em face de decisão proferida em procedimento criminal, assim como os artigos 255 e 256 que tratam do tema no Regimento Interno do STJ.
Em essência, também os pressupostos de cabimento e admissibilidade do Recurso Especial são os mesmos para ambas as esferas, conforme o rol taxativo do artigo 105, III, da CF/88:
- A decisão submetida ao REsp (seja cível ou criminal), deve: (i) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (ii) julgar válido ato ou lei local contestada em face de lei federal; (iii) dar a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal (divergência jurisprudencial).
Além desses, são indispensáveis os pressupostos genéricos de admissibilidade, como o prequestionamento (a matéria federal deve ter sido debatida e decidida na instância de origem) e a inexistência de reexame de fatos e provas (Súmula 7 do STJ), válidos para ambas as esferas. Quanto ao “filtro da relevância”, introduzido pela Emenda Constitucional nº 125/2022, ainda não há lei regulamentadora definindo como essa relevância será demonstrada, razão pela qual, por enquanto, tal pressuposto de admissibilidade não vem sendo exigido dos recursos especiais cíveis ou criminais.
Ainda que os fundamentos constitucionais e os pressupostos sejam compartilhados, as peculiaridades das esferas cível e criminal dão ao Recurso Especial tratamentos distintos, principalmente no que tange aos princípios que as regem e às consequências do julgamento. Vejamos:
- Natureza do Bem Jurídico Tutelado: esta é a principal diferença. Na esfera criminal, o Recurso Especial frequentemente lida com a liberdade de locomoção e a dignidade humana, gerando uma necessidade de maior urgência e uma abordagem mais garantista. Na esfera cível, a discussão geralmente versa sobre direitos patrimoniais, contratuais, familiares, etc. Essa diferença pode, em algumas situações, influenciar a priorização de pautas e a análise de nulidades processuais.
- Princípios Aplicáveis: O direito penal e processual penal são permeados por princípios como a presunção de inocência e o in dúbio pro reo[1]. Tais princípios podem levar a uma interpretação mais restritiva da norma penal ou processual penal em desfavor do acusado, o que não encontra paralelo com a mesma intensidade no processo cível, que se baseia em outros pilares, como a disponibilidade do direito e a autonomia da vontade.
- Preparo: No processo cível, via de regra, o REsp exige o recolhimento de preparo para sua admissibilidade. Já na esfera criminal, o preparo é dispensado para o réu, salvo em situações muito específicas, como em ações penais de iniciativa privada[2], em razão do direito à ampla defesa e do mais amplo acesso à justiça em matéria penal.
- Execução Provisória: No âmbito cível, a execução provisória do julgado (mesmo que haja REsp pendente) é, em regra, permitida, correndo por conta e risco do exequente. No campo criminal, após recentes mudanças jurisprudenciais, a regra é que a execução da pena privativa de liberdade só ocorre após o trânsito em julgado da condenação, ou seja, após esgotados todos os recursos, incluindo o Recurso Especial. Nada impede, desde que haja a devida fundamentação, que a eventual prisão preventiva seja mantida na pendência do REsp. O que estamos a afirmar é que a execução da pena em si depende, como regra, do trânsito em julgado.
- Nulidades Processuais: Embora o sistema de nulidades seja presente em ambos os ramos, uma nulidade no processo penal que gere prejuízo à defesa é vista com maior gravidade e pode levar à invalidação de atos mesmo em fases recursais avançadas, algo que no processo civil é muito mais difícil, porque sujeito à preclusão.
Em síntese, o Recurso Especial atua como um pilar de uniformização do direito federal para todo o sistema judicial brasileiro, pouco importando se a decisão foi proferida em procedimento cível ou criminal.
Embora a sua finalidade e os pressupostos de cabimento sejam universais para as áreas cível e criminal, as particularidades de cada esfera – em especial a proteção da liberdade no direito penal e os princípios que norteiam esse ramo específico – imprimem ao REsp características e procedimentos que, embora partam da mesma base, se adaptam à complexidade e aos valores fundamentais envolvidos em cada ramo do direito.
[1] “São dois princípios que se revelam em momentos processuais diferentes, manifestando-se o princípio da presunção de inocência ao longo de todo o processo, desde o inquérito até à audiência preliminar de julgamento, prolongando-se ainda até o trânsito em julgado da sentença de condenação. Por sua vez, o in dubio pro tem os seus momentos principais de atuação em sede de acusação e de julgamento. Na realidade, o in dubio, tendo estado adormecido desde o momento em que tinha sido dada a acusação, poderá reaparecer novamente, com todo o seu vigor, em sede de julgamento ao ser feita a valoração dada pelo juiz”. VILELA, Alexandra. Considerações acerca da presunção de inocência em Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora. 2000. p 79.
[2] “A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que, nos termos do art . 7º da Lei 11.636/07, não são devidas custas nos processos de habeas data, habeas corpus e recursos em habeas corpus, e nos demais processos criminais, salvo a ação penal privada” (AgRg no AREsp n. 1.517.516/RJ, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 26/5/2020, DJe de 2/6/2020).
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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