O Direito Processual Civil estabelece o instituto da preclusão como um pilar fundamental para a organização sequencial e a garantia da duração razoável do processo. A preclusão, ao impor a perda de uma faculdade processual em virtude de um marco temporal, lógico ou consumativo, visa primordialmente assegurar a segurança jurídica e a eficiência da atividade jurisdicional, disciplinando o comportamento das partes e evitando revisões indevidas.
A regra da preclusão, contudo, não pode ser aplicada de forma absoluta, sob pena de cercear o direito constitucional ao contraditório e à ampla defesa. O tema da possibilidade de complementação ou aditamento do recurso no âmbito do CPC/2015 reside exatamente neste dilema: como equilibrar a necessidade de estabilidade processual (imposta pela preclusão consumativa) com a instrumentalidade do processo e o direito das partes de adequar suas impugnações a fatos supervenientes ou a modificações de julgados.
Embora o CPC/2015 não defina a preclusão consumativa em um artigo único, seu fundamento legal decorre de uma interpretação sistemática do ordenamento processual. Dois dispositivos são cruciais na sustentação da preclusão consumativa em matéria recursal:
- Artigo 507 do CPC/2015: Este é o principal alicerce legal da preclusão em geral, determinando que “É vedado à parte discutir no curso do processo as questões já decididas a cujo respeito se operou a preclusão”. Esse dispositivo impede a rediscussão de questões já submetidas ao crivo judicial, garantindo a estabilidade das decisões interlocutórias e de mérito proferidas durante o trâmite processual.
- Artigo 1.000 do CPC/2015 (Princípio da Unirrecorribilidade): este artigo, ao consagrar o princípio da singularidade ou unirrecorribilidade recursal, implica que, em regra, a interposição de um recurso contra determinada decisão consuma o direito de recorrer da parte. Isso significa que, uma vez praticado o ato de recorrer, o aditamento ou a interposição de um segundo recurso contra a mesma decisão, ainda que por fundamentos diversos, é vedado
A natureza da preclusão consumativa recursal deve ser entendida sob dois ângulos. O art. 507 impede a rediscussão de questões decididas. Já o art. 1.000 impede a repetição do ato de recorrer. Esta distinção é fundamental. Quando ocorre um evento superveniente, como a alteração da decisão pela própria jurisdição, a vedação do art. 507 não pode ser absoluta. Permitir o aditamento nesses casos não é uma quebra da preclusão, mas sim um ajuste recursal necessário, para que a parte possa impugnar o novo conteúdo decisório. As exceções previstas na lei, como as do art. 1.024, § 4º, existem justamente para manter a coerência do sistema recursal diante de uma alteração do quadro jurídico pós-recurso.
O art. 1.024, § 4º, do CPC/2015 estabelece: “Caso o acolhimento dos embargos de declaração implique modificação da decisão embargada, o embargado que já tiver interposto outro recurso contra a decisão originária tem o direito de complementar ou alterar suas razões, nos exatos limites da modificação, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da intimação da decisão dos embargos de declaração.”
Este dispositivo consagra o direito de complementar ou alterar as razões de um recurso já protocolado, desde que preenchidas duas condições rigorosas: o acolhimento dos Embargos de Declaração (EDs) e a consequente modificação da decisão que fora objeto de impugnação anterior. O prazo estabelecido para o aditamento é de 15 dias, e a complementação deve se restringir estritamente aos “exatos limites da modificação” promovida pela decisão dos EDs.
O direito de aditamento neste contexto não é uma mera faculdade discricionária do juiz, mas um autêntico direito processual da parte. Ele decorre da necessidade de garantir que a parte possa exercer sua defesa de forma plena contra o novo conteúdo decisório, que só surgiu ou se consolidou após o julgamento dos EDs.
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado o art. 1.024, § 4º, em casos complexos de recursos de natureza especial. A Corte Especial pacificou o entendimento de que a interposição de Agravo em Recurso Especial (AREsp) não é impedida pela concomitante interposição de EDs contra a mesma decisão. O EAREsp 2.039.129/DF é o precedente paradigmático que afastou a preclusão consumativa nessa hipótese. A Ministra Relatora Nancy Andrighi esclareceu que, se os EDs forem acolhidos com modificação, o recorrente que já havia interposto o AREsp terá o direito de complementar ou alterar suas razões no prazo de 15 dias. Essa posição jurisprudencial reconhece que, na presença de uma nova realidade decisória, o ato processual anterior (a interposição do AREsp original) torna-se deficiente, mas não inválido, sendo necessária apenas a sua adaptação.
O mecanismo de aditamento serve, portanto, como uma ferramenta de coerência processual. O recurso inicial impugnou a decisão em seu estado original. Quando a decisão é modificada, surge um novo objeto de impugnação, e a permissão para complementar ou alterar as razões resguarda o direito de defesa contra essa nova decisão, impedindo que a preclusão consumativa opere de forma injusta sobre o ponto alterado.
Além das hipóteses legais taxativas, a jurisprudência do STJ desenvolveu e aplicou entendimentos que flexibilizam a preclusão consumativa em situações nas quais a instrumentalidade e a boa-fé processual devem prevalecer.
A Quarta Turma do STJ firmou uma tese crucial ao determinar que a interposição de um recurso que não existe no ordenamento jurídico, em virtude do princípio da taxatividade recursal, não é capaz de gerar a preclusão consumativa (REsp 2.141.420).
O princípio da taxatividade exige que apenas os meios de impugnação expressamente previstos em lei sejam considerados recursos. Se uma parte protocola uma peça que o sistema não reconhece como recurso (por exemplo, o antigo agravo retido contra uma decisão interlocutória, após a revogação deste pelo CPC/2015), este ato é tido como juridicamente inexistente. O STJ decidiu que, como o recurso inexistente não representa a prática válida de uma faculdade processual, ele não possui a capacidade de produzir efeitos jurídicos, nem mesmo o de gerar a preclusão. Consequentemente, a parte pode, posteriormente, interpor o recurso correto (como o agravo de instrumento), desde que o faça dentro do prazo legal. Essa interpretação demonstra um refinamento da aplicação do instituto da preclusão, que não pode ser invocado pela parte adversa quando o ato praticado originalmente sequer possui existência jurídica. Essa distinção é vital, pois diferencia o erro grosseiro (que não consuma o direito, se for um recurso inexistente) da interposição de um recurso cabível mas intempestivo ou formalmente deficiente, onde a preclusão é aplicada rigidamente.
Outra possibilidade de afastar o instituto da preclusão está no art. 493 do CPC. Embora o art. 507 proíba a rediscussão de matérias preclusas, a admissão de fatos novos que influenciem o julgamento recursal é prevista genericamente pelo art. 493 do CPC (fato superveniente).
Em uma aplicação mais específica da instrumentalidade processual, o STJ enfrentou a questão da mudança de fundamentos em juízo de retratação, previsto no regime de recursos repetitivos (art. 1.040, II, CPC). O REsp 1.946.242/RJ tratou do cenário em que o Tribunal de origem, ao reexaminar a causa após um tema repetitivo, manteve sua decisão original, mas alterou a ratio decidendi (a base jurídica da condenação). Neste precedente, o STJ decidiu que a mudança do acórdão na fase de retratação não exige a interposição de um novo recurso especial. Contudo, a parte tem a faculdade de fazer complementação para adaptar as razões recursais ao novo fundamento adotado pelo acórdão recorrido.
Essa decisão reforça que a preclusão consumativa não pode ser um obstáculo intransponível quando a própria base jurídica da decisão impugnada se altera por ato do juízo. Permitir o aditamento, neste caso, é uma manifestação do princípio da instrumentalidade, garantindo que o direito de defesa seja exercido contra a decisão efetivamente proferida, e não contra uma decisão cujos fundamentos foram esvaziados ou substituídos.
É importante notar, contudo, que a preclusão consumativa é aplicada com rigor mesmo para matérias de ordem pública, como a prescrição ou decadência, se estas forem resolvidas por decisão interlocutória. O STJ exige a interposição do recurso imediato para impugnar tal decisão (agravo de instrumento). Caso a parte não o faça, a preclusão consumativa da questão se opera, vedando a rediscussão da matéria em fase posterior ou em eventual recurso de apelação.
Em suma, embora a preclusão consumativa permaneça como a regra geral para garantir a ordem processual, o sistema atual prevê válvulas de segurança bem delimitadas, seja por força legal (art. 1.024, § 4º) ou por interpretação jurisprudencial (recurso inexistente, como vimos anteriormente), permitindo que a parte adapte ou complemente seu recurso em face de modificações decisórias ou de atos processuais ineficazes, garantindo assim um processo justo e efetivo.
O desafio remanescente reside na contínua delimitação, pelos tribunais superiores, dos “exatos limites da modificação”, a fim de evitar que o aditamento recursal se desvie de sua função específica e se transforme em um expediente para reabrir a discussão integral da matéria já preclusa.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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