A cessão de direitos hereditários configura-se como um negócio jurídico de alta relevância no ordenamento jurídico brasileiro, servindo como uma alternativa estratégica e frequentemente utilizada por herdeiros que buscam a transferência de sua participação em um acervo sucessório, seja de forma total ou parcial. Este instituto se manifesta como um instrumento para a resolução de questões de liquidez ou para simplificar inventários que, por sua complexidade ou conflitos entre as partes, poderiam se arrastar por um período considerável. Sua aplicação se dá exclusivamente em um momento específico do processo sucessório: após a abertura da sucessão, ou seja, depois do falecimento do autor da herança.
É crucial distinguir a cessão de direitos hereditários de um conceito legalmente proibido, o pacta corvina. A legislação civil brasileira, em seu artigo 426, estabelece uma vedação absoluta à celebração de contrato que tenha por objeto a herança de uma pessoa viva. Essa proibição delimita o campo de atuação da cessão de direitos hereditários, que só pode ser validamente concretizada quando o evento morte já tiver ocorrido e, consequentemente, o direito sucessório tiver sido transmitido aos herdeiros.
A compreensão da cessão como um negócio jurídico inter vivos sobre um direito já adquirido, mas ainda não partilhado, é a pedra angular para a análise de todas as suas nuances e implicações.
Definição e natureza jurídica
A cessão de direitos hereditários é um negócio jurídico bilateral, formal e inter vivos, que se realiza entre o herdeiro (cedente) e a pessoa que irá adquirir sua posição jurídica na herança (cessionário). Por meio deste ato, o cedente transfere ao cessionário o conjunto de direitos e obrigações que lhe cabem no acervo hereditário, antes que a partilha dos bens seja concluída. Essa transferência pode ser realizada a título oneroso, quando há uma contraprestação financeira, ou a título gratuito, quando se assemelha a uma doação.
O objeto da cessão
O objeto da cessão de direitos hereditários é o quinhão do herdeiro no monte-mor, não um bem específico ou determinado. O Código Civil, em seu artigo 1.791, estabelece que a herança, ainda que composta por vários herdeiros, é um todo unitário, indivisível. Esse princípio da indivisibilidade é a base legal para a forma como a cessão deve ser realizada. Enquanto perdurar a indivisão, o herdeiro não é proprietário de nenhum bem singular do acervo; ele detém, em condomínio com os demais, uma fração ideal e abstrata sobre a totalidade da herança.
A aquisição do quinhão hereditário faz com que o cessionário se sub-rogue na posição jurídica do cedente no processo de inventário. Com isso, o cessionário passa a integrar o rol de interessados na sucessão, exercendo os mesmos direitos e assumindo os mesmos deveres do herdeiro original, inclusive a responsabilidade proporcional por eventuais dívidas e encargos que recaiam sobre a herança. Esta sub-rogação é o que permite ao cessionário pleitear, no momento da partilha, a adjudicação dos bens que correspondem ao seu quinhão.
Fundamentação legal e requisitos de validade
O Código Civil brasileiro impõe um requisito formal solene para a validade da cessão de direitos hereditários. Conforme o artigo 1.793, caput, a cessão deve ser obrigatoriamente realizada por meio de escritura pública, sob pena de nulidade. A inobservância desta forma acarreta a nulidade do negócio jurídico, conforme o artigo 166, IV, do Código Civil. Esta exigência de forma é um dos aspectos mais críticos e distintivos do instituto, garantindo a publicidade e a segurança jurídica da transação.
A necessidade de escritura pública não é uma imposição aleatória; ela se justifica pela natureza jurídica do direito à sucessão aberta. O artigo 80, II, do Código Civil, define o direito à sucessão aberta como um bem imóvel, ainda que o acervo hereditário seja composto apenas por bens móveis. A cessão, ao transferir este direito, está, na prática, alienando um bem imóvel. A legislação civil brasileira exige, via de regra, que a transmissão de bens imóveis seja realizada por meio de instrumento público, o que explica a imposição do artigo 1.793 e alinha a cessão de direitos hereditários com as normas de alienação imobiliária.
Modalidades de cessão
A cessão de direitos hereditários pode ser realizada de duas formas distintas, a depender da natureza da contraprestação acordada entre as partes. A modalidade adotada influencia diretamente as consequências jurídicas e fiscais do negócio jurídico.
A cessão onerosa ocorre quando o cessionário oferece uma contraprestação financeira, geralmente um preço em dinheiro, pela aquisição do quinhão hereditário. Neste caso, a operação jurídica se assemelha a uma compra e venda. A cessão onerosa implica a incidência do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (Inter Vivos) – ITBI, cuja responsabilidade pelo recolhimento, via de regra, recai sobre o cessionário (o adquirente).
Por outro lado, a cessão gratuita se configura quando o cedente transfere sua quota-parte na herança sem exigir qualquer contraprestação. Juridicamente, o ato é equiparado a uma doação. A cessão gratuita é o fato gerador do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, e a responsabilidade pelo pagamento do tributo recai sobre o donatário/cessionário. A base de cálculo do ITCMD, assim como do ITBI, é o valor venal do bem ou direito transmitido, que pode ser objeto de revisão pela autoridade fiscal.
A dualidade tributária na cessão de direitos hereditários, com a incidência do ITCMD na modalidade gratuita e do ITBI na onerosa, ilustra a interface complexa entre o direito sucessório (causa mortis) e o direito contratual (inter vivos). A qualificação jurídica do negócio celebrado entre as partes (doação ou compra e venda) é o fator determinante para a incidência fiscal, demonstrando que a cessão, embora tendo origem na sucessão, é tratada como um ato de transmissão inter vivos para fins tributários.
A questão dos bens singulares
O Código Civil, em sua preocupação com o princípio da indivisibilidade da herança, estabelece uma regra de ineficácia para a cessão de bens singulares. O artigo 1.793, § 2º, determina que “É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente”. A razão para essa norma é simples: antes da partilha, o herdeiro não é dono de um bem específico, mas apenas de uma quota ideal sobre o todo. A cessão de um bem determinado seria inoponível aos demais herdeiros e ao espólio, pois a concretização da propriedade sobre o bem dependeria de um evento futuro e incerto: a efetiva atribuição do bem ao herdeiro cedente no momento da partilha.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), adotando uma abordagem pragmática para lidar com a realidade dos negócios jurídicos, tem mitigado a rigidez da ineficácia. A Corte Superior não vem considerando a cessão de bem singular nula. Em casos assim, ela reclassifica o ato como uma promessa de venda. A eficácia plena do negócio, ou seja, a transferência definitiva da propriedade, fica condicionada à futura atribuição daquele bem ao quinhão do herdeiro cedente por ocasião da partilha. A Corte entende que a cessão, embora não transfira a propriedade de imediato, possui validade no plano das obrigações pessoais, criando um vínculo entre as partes que pode ser exigido no futuro. Exemplificando: REsp: 1871768 SP, DJ 17/12/2020.
Apesar da regra geral, a cessão de bem singular pode ser válida desde o início, sem depender de condição futura, em duas situações:
- Com autorização judicial: A obtenção de um alvará judicial específico, concedido pelo juiz do inventário, valida a cessão e a torna oponível a todos os herdeiros e a terceiros.
- Com a anuência de todos os co-herdeiros e do cônjuge meeiro: Se a cessão for realizada em conjunto por todos os herdeiros, o ato se configura não mais como uma cessão de quinhão, mas sim como uma venda direta do bem, devidamente formalizada e acordada por todos os envolvidos.
Direito de preferência e notificação dos herdeiros
O direito de preferência é uma prerrogativa legal que se manifesta quando um co-herdeiro decide ceder onerosamente sua quota-parte na herança a um estranho à sucessão. Conforme o artigo 1.794 do Código Civil, os co-herdeiros têm o direito de adquirir a quota cedida em igualdade de condições (“tanto por tanto”). Esse instituto é uma consequência direta da natureza da herança indivisa como um condomínio, conferindo aos condôminos o direito de manter a propriedade entre si, evitando a entrada de terceiros que possam dificultar a futura partilha.
A lei exige que o herdeiro cedente notifique os demais co-herdeiros sobre sua intenção de ceder onerosamente sua quota-parte. O Superior Tribunal de Justiça, em sua jurisprudência, conferiu um sentido mais rigoroso a essa obrigação. A Terceira Turma do STJ consolidou o entendimento de que a notificação deve ser adequada, garantindo aos co-herdeiros a plena ciência não apenas do interesse na alienação, mas também do preço e das condições de pagamento oferecidas pelo terceiro proponente. Uma notificação falha ou incompleta pode levar à anulação da cessão, pois não cumpre o objetivo de assegurar o direito de preferência de forma efetiva (STJ, REsp 1620705/RS 2013/0396090-1, Relator: Ministro Ricardo Villas bôas Cueva, Data de Julgamento: 21/11/2017, 3ª Turma, Data de Publicação: DJe 30/11/2017)
Se o co-herdeiro não for devidamente notificado da cessão onerosa, ele terá um prazo decadencial de 180 dias, a partir da data da transmissão, para depositar o preço e requerer a quota para si. Se houver mais de um co-herdeiro interessado em exercer o direito de preferência, a quota cedida será distribuída entre eles na proporção de seus respectivos quinhões hereditários. A inobservância do direito de preferência e da notificação adequada pode resultar na invalidação do negócio jurídico perante o co-herdeiro prejudicado, mesmo que a cessão tenha sido formalizada.
Responsabilidade sobre as dívidas da herança e tributação
Ao adquirir o quinhão hereditário, o cessionário sub-roga-se na posição do cedente, passando a exercer seus direitos e deveres na sucessão. Isso significa que o cessionário assume, proporcionalmente, a responsabilidade pelas dívidas e encargos que recaem sobre o espólio, até o limite das forças da herança. A legislação sucessória brasileira protege o patrimônio pessoal dos herdeiros e, por extensão, dos cessionários, estabelecendo que eles não respondem por dívidas do falecido que excedam o valor dos bens herdados. A cessão, portanto, é uma transferência completa da posição jurídica, incluindo seus bônus (os bens) e seus ônus (as dívidas).
Além disso, a cessão de direitos hereditários é um fato gerador de impostos de transmissão, cuja natureza e sujeito passivo variam de acordo com a modalidade do negócio jurídico.
Conforme demonstrado anteriormente, na cessão gratuita, que se equipara a uma doação, incide o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). O sujeito passivo do ITCMD é o cessionário/donatário, ou seja, quem recebe o bem ou direito de forma não onerosa.
Na cessão onerosa, que se assemelha a uma compra e venda, incide o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (Inter Vivos) – ITBI. Neste caso, o responsável pelo pagamento do tributo, embora a legislação municipal possa variar, é o cessionário/adquirente.
A diferenciação da responsabilidade fiscal revela que o legislador e as autoridades tributárias não consideram a cessão como um ato monolítico, mas sim como uma interface entre o direito sucessório e o direito contratual. A incidência do ITCMD na doação e do ITBI na compra e venda reforça a qualificação jurídica do negócio inter vivos como o fator determinante para a tributação. A cessão, portanto, exige uma análise multidisciplinar que combine a lógica do direito civil e do direito tributário para a correta aplicação das normas.
Orientações finais
Para a condução de uma cessão de direitos hereditários com a devida segurança jurídica, é imperativo seguir as seguintes orientações:
- Forma Solene: Realizar a cessão exclusivamente por meio de escritura pública, sob pena de nulidade do ato.
- Cessão de Bens Singulares: Em caso de cessão de um bem determinado, buscar a autorização judicial (alvará) ou a anuência expressa de todos os co-herdeiros. A ausência desses requisitos torna o ato inoponível e o limita a uma promessa de venda cuja eficácia depende do resultado futuro da partilha.
- Direito de Preferência: Em cessões onerosas a terceiros estranhos à sucessão, notificar formalmente os demais co-herdeiros sobre todos os termos da negociação, incluindo preço e condições de pagamento, para evitar a anulação do negócio por meio do exercício do direito de preferência.
- Aspectos Tributários: Compreender a natureza jurídica da cessão (onerosa ou gratuita) para identificar o tributo aplicável (ITBI ou ITCMD) e o sujeito passivo da obrigação, planejando de forma adequada o recolhimento fiscal.
Em última análise, a cessão de direitos hereditários é um instituto valioso, mas que exige do profissional do direito um profundo conhecimento da interconexão entre as normas civis e processuais, bem como uma análise cuidadosa da jurisprudência dominante, para que os objetivos das partes sejam alcançados de maneira eficaz e segura.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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