Além das hipóteses legais em que se autoriza a desconstituição da coisa julgada por meio da via rescisória, a doutrina e a jurisprudência admitem, também, o ajuizamento de ação destinada a declarar vício insuperável de existência da sentença transitada em julgado. Trata-se da querela nullitatis insanabilis.
Essa ação não possui previsão no ordenamento jurídico, sendo, como já salientando, uma criação da doutrina e jurisprudência destinada a declarar vício insanável de sentença transitada em julgado.
A doutrina costuma arrolar como pressupostos processuais, cuja falta implica inexistência de relação processual, os seguintes: investidura de juiz, demanda e citação. Justamente em razão de os vícios decorrentes da falta desses pressupostos acarretarem a inexistência da relação jurídica processual, fala-se em vícios transrescisórios – além da rescisão –, porquanto, inexistindo relação jurídica, não há o que se rescindir ou desconstituir. Na prática, o exemplo mais rotineiro no dia a dia da advocacia é justamente a ausência de citação válida, desenvolvendo-se o processo à revelia do réu.
Veja, a propósito dessa explanação inicial, o seguinte precedente do STJ:
(…) A par de tais hipóteses legais em que se autoriza a desconstituição da coisa julgada por meio da via rescisória, doutrina e jurisprudência admitem, também, o ajuizamento de ação destinada a declarar vício insuperável de existência da sentença transitada em julgado que, por tal razão, apenas faria coisa julgada formal, mas nunca material, inapta, em verdade, a produzir efeitos. Por isso, não haveria, em tese, comprometimento da almejada segurança jurídica. Trata-se, pois, da querela nullitatis insanabilis, a qual, ao contrário da ação rescisória, que busca desconstituir sentença de mérito válida e eficaz, tem por finalidade declarar a ineficácia de sentença que não observa pressuposto de existência e, por consequência, de validade, logo não pode ser alcançado pela limitação temporal imposta àqueles vícios passíveis de serem impugnados por meio da ação rescisória. Dessa forma, sendo a nulidade da citação um vício transrescisório, incapaz, portanto, de ser sanado, não há que se falar em ocorrência de preclusão na hipótese, afastando-se, assim, a apontada violação ao art. 278 do CPC/2015” (STJ, 3ª Turma, REsp 1902133/RO, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, j. 16/04/2024, DJe 18/04/2024).
Diferentemente, a ação rescisória, por se referir a vícios que não atacam o plano de existência, mas sim o plano de validade do processo, visa à desconstituição de uma situação jurídica a princípio válida, qual seja, a coisa julgada material, que estava apenas aguardando o transcurso de um lapso temporal – dois anos contados do trânsito em julgado –, para se tornar soberanamente julgada, ou, em trocadilho, “definitivamente definitiva”, sem possibilidade de qualquer desconstituição futura, em respeito ao princípio da segurança jurídica.
Em suma, a querela nullitatis, quando cabível, situa-se no plano da existência, não se confundindo com as questões afeitas ao plano da validade ou mérito, sanáveis por meio de ação rescisória por expressa disposição legal (STJ, 4ª Turma. AgInt no AREsp 2597484/MS, DJe 7/11/2024).
Outra importante distinção – já abordada no julgado citado – é que a querela nullitas – em razão da natureza dos vícios transrescisórios, que acarretam a inexistência da anterior relação processual – não se sujeita a qualquer prazo decadencial ou prescricional, ao passo que o direito de pretender a rescisão do julgado decai, como visto anteriormente, em dois anos. Ademais, a querela nullitatis será proposta perante o juízo que proferiu a decisão impugnada, enquanto a rescisória é de competência dos tribunais.
Apesar das diferenças, regras concernentes à legitimidade para o ajuizamento da rescisória, por exemplo, devem ser aplicadas, por analogia, à querela nullitatis.
Em nosso ordenamento, a querela nullitatis pode ser arguida via impugnação ao cumprimento de sentença, embargos à execução, ou mesmo em ação autônoma (actio nullitatis), com base no art. 19, I, do CPC. No entanto, ainda que nenhuma dessas demandas seja proposta, o Superior Tribunal de Justiça, em homenagem aos princípios da instrumentalidade das normas, da celeridade, da economia e da efetividade processual, considera possível o reconhecimento da nulidade de decisões maculadas por vícios transrescisórios. Em outras palavras, não há sequer a necessidade de uma ação específica para a declaração da nulidade.
Pense, por exemplo, em uma ação de usucapião. Ela foi julgada procedente e, após a sentença, o imóvel registrado em nome do autor (Felipe). Ocorre que o réu (Marcos) – proprietário anterior do imóvel – nunca foi citado. O imóvel foi vendido posteriormente a um terceiro (João), até que o primeiro proprietário – aquele que não foi citado na usucapião (Marcos) – descobriu o que aconteceu e ajuizou uma ação declaratória de nulidade da venda realizada entre Felipe e João.
O juízo de primeiro grau extinguiu a ação proposta por Marcos, sem resolução do mérito, alegando falta de interesse de agir. Para o magistrado, antes de anular a venda em si era necessário desconstituir a coisa julgada através do ajuizamento da querela nullitatis, já que passado o prazo para a propositura de ação rescisória.
O caso chegou ao STJ, que afastou o excesso de formalismo exigido pelo juízo de primeiro grau. Conforme trecho da decisão da Ministra Nancy Andrighi, a querela nullitatis devbe ser compreendida como “pretensão” e não como “procedimento”. Como consequência, o STJ admite a invocação da nulidade de decisões transitadas em julgado eivadas de vícios transrescisórios sem a necessidade de forma específica ou de propositura de uma ação declaratória autônoma.
“(…) A pretensão da querela nullitatis, assim, a depender das circunstâncias de cada hipótese, pode estar inserida em questão prejudicial ou principal da demanda, bem como pode ser arguida através de diferentes meios processuais (como ações declaratórias em geral, alegação incidental em peças defensivas, cumprimento de sentença, ação civil pública e mandado de segurança)” (REsp n. 2.095.463/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 18/3/2025, DJEN de 21/3/2025).
Outro exemplo relevante extraído da jurisprudência do STJ é a possibilidade de que a pretensão de querela nullitatis seja apreciada mesmo quando deduzida no bojo de ação rescisória proposta após o prazo decadencial. Nessa hipótese, tal como no exemplo da ação de usucapião, a demanda não deve ser extinta por ausência de interesse de agir ou inadequação da via eleita, mas deve ser remetida, de ofício, ao juízo de primeiro grau para ser processada como ação declaratória de nulidade (STJ. 4ª Turma. REsp 1.117.073/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/8/2011).
Quando ainda desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, cheguei a admitir a fungibilidade entre ação rescisória e querela nullitatis (TJ-MG, Ação Rescisória 1.0000.06.421451-8/000, 9º Grupo de Câmaras, j. 13/09/2006), entendimento que hoje é compartilhando pelo STJ.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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