Segundo o disposto no art. 966 do CPC, uma das hipóteses de rescisão da decisão de mérito transitada em julgado ocorre por violação manifesta de norma jurídica.
Vejamos um exemplo que facilita a compreensão da hipótese: imagine que Antônio ajuizou ação indenizatória contra determinado plano de saúde. O juiz julgou procedente o pedido. Somente a operadora de plano de saúde recorreu e o Tribunal local, além de negar provimento ao recurso, aumentou o valor da indenização, piorando a situação do réu. Este, por sua vez, interpôs Recurso Especial ao STJ. Na Corte Cidadã foi dado parcial provimento ao recurso para restabelecer a sentença. O advogado do autor não foi intimado desta decisão. Houve o trânsito em julgado. O autor ajuizou ação rescisória alegando nulidade absoluta em razão da ausência de intimação[1].
No exemplo acima, a Ação Rescisória chegou até o STJ, que entendeu que a ausência de intimação da decisão que implicou o provimento parcial do recurso interposto pela parte contrária é sempre prejudicial ao recorrido (2ª Seção, AR 6.463-SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 12/4/2023). Isso porque, o defeito ou a ausência de intimação – requisito de validade do processo (art. 272, § 2º e art. 280) – impedem a constituição da relação processual e constituem temas passíveis de exame em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de forma, alegação de prejuízo ou provocação da parte. Trata-se de vícios transrescisórios. Ou seja, tanto poderia ser ajuizada a denominada “querela nulIitatis” quanto ação rescisória por violação manifesta do disposto no art. 272, § 2º, do CPC.
O importante, para fins de admissibilidade da ação rescisória com base em violação da norma jurídica, é que o vício correspondente seja pressuposto de validade da decisão e não algo posterior a ela, como se dá, por exemplo, com a falha no ato de publicação da sentença. Nesse sentido:
“[…] A ausência de intimação a respeito da decisão que se pretende rescindir não enseja cabimento de ação rescisória, haja vista que tal vício não constitui pressuposto de validade do ato decisório, mas sim irregularidade posterior a ele. Assim, não se pode admitir que, em função de suposto vício processual ocorrido posteriormente ao acórdão que se busca desconstituir, seja ajuizada ação rescisória” (TJ-MG, AgRG na Ação Rescisória 1.0000.06.442451-8/000, 9º Grupo de Câmaras Cíveis, Rel. Des. Elpídio Donizetti, j. 06.09.2007, publicado em 03.10.2007).
Ressalte-se que o CPC/1973 tratava de violação à “literal disposição de lei” (art. 485, V), e não de “norma jurídica”. A “lei” a que se referia o inciso V do art. 485 do CPC/1973 deveria, contudo, ser entendida em sua acepção lata, incluindo-se não só as normas de natureza processual, como qualquer ato normativo que deveria ter sido aplicado ao caso.
O CPC/2015, ao adotar a expressão “norma jurídica”, contempla também os precedentes judiciais. A súmula vinculante editada pelo STF, por exemplo, deve ter o mesmo tratamento da “lei” para fins de admissibilidade da ação rescisória, porquanto constitui fonte primária do direito, com eficácia erga omnes, vinculando os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública Direta e Indireta, assim como os comandos legais.[2]
Entretanto, de acordo com os §§ 5º e 6º do art. 966, não é toda e qualquer decisão que constitui um precedente, ainda que vinculante, que é capaz de ensejar ação rescisória. Tais parágrafos, acrescidos pelo PLC (Projeto de Lei da Câmara) nº 168/2015 – posteriormente convertido na Lei nº 13.256/2016, trazem a seguinte redação:
Art. 966.
[…] § 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.
§ 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica.
Se, por exemplo, no processo de conhecimento a parte invoca uma súmula do STJ como norma jurídica, a sua aplicação ao caso concreto depende da realização do distinguishing, ou seja, da demonstração de semelhança ou de distinção entre os fundamentos determinantes do precedente e os do caso sob julgamento. Somente se houver semelhança pode-se aplicar a ratio decidendi do precedente. A não aplicação do precedente ao caso concreto exige que o julgador demonstre a inexistência de semelhança entre a decisão paradigma e o caso proposto ou fundamente a eventual superação do precedente (overruling). As disposições constantes nesses parágrafos possuem estreita relação com a exigência de fundamentação da decisão jurisdicional prevista nos incisos V e VI do art. 489, § 1º.
Se não observado o dever de fundamentação, surge para a parte prejudicada a possibilidade de propositura de ação rescisória, a fim de que o tribunal rescinda a decisão e, se for o caso, proceda ao rejulgamento da causa.
No mais, o CPC atual reforça que é indispensável que a violação à norma seja manifesta, isto é, a contrariedade ao texto da lei, ao princípio ou ao precedente vinculante, deve ser constatável de plano. Em qualquer caso, havendo ensejo para interpretações controvertidas, a rescisória não será cabível (Súmula nº 343 do STF[3]). Além disso, a parte que pretende rescindir o julgado deve, na própria petição inicial da ação rescisória, indicar precisamente a norma jurídica violada, sob pena de inépcia (STJ, AgInt na AR 5811/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, j. 24.08.2022).
Frise-se que o objetivo do STF, consubstanciado na Súmula nº 343, sempre foi de resguardar o caráter excepcional da ação rescisória, que não pode servir para rescindir uma decisão que tenha adotado posição razoável, mesmo que esta venha a ser modificada posteriormente pelo sistema. Sobre o tema, o STJ (2ª Seção), no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.508.018 (j. 22.05.2023), definiu ser cabível ação rescisória somente quando a divergência acerca da interpretação de texto legal já tiver sido superada em momento anterior à prolação da chamada sentença rebelde. Ou seja, se no momento da prolação da decisão judicial o magistrado adotou um entendimento que já se encontrava superado, a ação rescisória se mostrará viável. Caso contrário, se a decisão tiver transitado em julgado, não há falar em rescisão por mudança posterior de entendimento.
Ocorre que, em fevereiro de 2023, o mesmo STJ, através da 1ª Seção, parece ter alterado esse posicionamento, admitindo a utilização de ação rescisória para desconstituir o resultado de processo já encerrado quando, posteriormente, houver a mudança e a consolidação de posição em sentido oposto ao que foi decidido.
Embora a votação tenha sido apertada (4 x 3), a tese inovadora do Ministro Relator da AR 6.015 (j 08.02.2023) admitiu a utilização, pela Fazenda Nacional, de ação rescisória para desconstituir acórdão que lhe foi desfavorável, em um caso tributário de amplo impacto econômico. Essa nova posição vale, contudo, para ações de natureza coletiva, conforme diferenciação feita pelos próprios Ministros durante a votação. Sopesam-se, então, a segurança jurídica e o interesse coletivo para, se for o caso, admitir a relativização da coisa julgada e, consequentemente, do já mencionado entendimento exposto na Súmula 343 do STF.
Ainda sobre esse tema, vale uma importante observação: o CPC em vigor, ao dispor sobre as hipóteses nas quais o executado pode impugnar uma decisão judicial na fase de cumprimento de sentença, estabelece que poderá ser arguida nesse procedimento a inexequibilidade do título ou a inexigibilidade da obrigação. Ou seja, se a decisão violar norma posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo, eventuais decisões controvertidas sobre essa norma não poderão ser utilizadas para impossibilitar a rescisão do julgado. Nesse caso caberá ação rescisória na forma do art. 525, § 15, do CPC atual. Pode-se dizer, então, que a decisão baseada em lei posteriormente julgada inconstitucional se trata de mais uma hipótese em que será possível a utilização da ação rescisória.
A inexequibilidade do título decorre da ausência de pressupostos para a instauração da fase de cumprimento, seja por conta das características do documento apresentado, seja pelas condições formais desse documento. Por exemplo: se o credor pretende dar início ao cumprimento de uma decisão estrangeira, é necessário que tenha havido prévia manifestação do STJ. Se a Corte não se manifestou, seja para homologar, no caso de sentença, ou para concessão de exequatur, no caso de decisão interlocutória, o cumprimento não poderá ser iniciado porquanto o título ainda não é exequível.
De acordo com a literalidade do § 12 do art. 525, também será considerada inexigível a obrigação “reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso”.
A literalidade desse dispositivo indica que o prazo para propor a ação rescisória começa sempre a contar do trânsito em julgado da decisão do STF, sem nenhuma outra limitação. Com isso, em tese, qualquer sentença antiga, de qualquer tempo, pode ser rescindida, desde que a ação seja proposta até dois anos após o STF declarar a norma inconstitucional.
Ocorre que o STF restringiu a aplicação automática dos dispositivos do CPC ao estabelecer que ele próprio pode decidir caso a caso se os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes serão retroativos ou não, e se haverá (ou não) repercussão sobre a coisa julgada, ou seja, se a decisão poderá ser utilizada como fundamento para ações rescisórias. Portanto, na prática, se o STF entender que o interesse social e a segurança jurídica são bens inegociáveis no caso concreto, pode até proibir o ajuizamento de ação rescisória com base em determinado precedente (AR 2.876 QO/DF, de Relatoria do Gilmar Mendes, julgada em 24/04/2025).
Outro ponto definido nessa decisão diz respeito ao prazo para a rescisória, quando ela for cabível: quando o próprio STF não definir expressamente os efeitos no tempo da sua decisão de inconstitucionalidade, essa decisão poderá servir de fundamento para uma ação rescisória, mas com duas limitações importantes: (i) primeira: a ação rescisória deve ser proposta no prazo legal de dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão do STF; (ii) segunda: a rescisão da sentença transitada em julgado não poderá retroagir para atingir situações que tenham ocorrido há mais de 5 anos contados do ajuizamento da ação rescisória.
Por fim, o STF decidiu que mesmo sem propor ação rescisória, a parte pode se valer do precedente diretamente na fase de execução, alegando que o título não pode ser cumprido porque está baseado em uma norma ou interpretação já considerada inconstitucional pelo STF. Isso vale mesmo que a decisão do STF tenha sido prolatada depois do trânsito em julgado da sentença. A única barreira é a preclusão, ou seja, se a parte tinha a chance de suscitar essa questão antes (por exemplo, na impugnação ao cumprimento de sentença) e não o fez, perde o direito de discutir isso em momento posterior.
Com relação às súmulas não vinculantes, há entendimento consolidado no STJ no sentido de que o art. 485, V, do CPC/1973 não abrangeria a contrariedade à súmula (AR 4.112/SC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 28.11.2012). No Tribunal Superior do Trabalho também há orientação jurisprudencial nesse sentido (OJ nº 25 da SBDI-II[4]).
Por fim, vale o alerta no sentido de que a ação rescisória proposta com base nesse dispositivo não permite, em regra, o reexame de toda a decisão rescindenda, para verificar se nela há ou não outras violações à literal disposição de leis não alegadas pelo autor. Ou seja, o juízo rescindente está necessariamente vinculado aos dispositivos apontados como violados, não lhe sendo permitido analisar outras eventuais ofensas à norma jurídica, sob pena de transformação da ação rescisória em verdadeiro recurso.[5] Exceção fica por conta da hipótese em que contra a decisão na ação rescisória fundada nesse dispositivo há interposição de recurso especial. Ou seja, no julgamento do REsp interposto contra acórdão em ação rescisória pode o STJ atacar diretamente os fundamentos do acórdão rescindendo, não precisando limitar-se aos pressupostos de admissibilidade da rescisória. É que se o recorrente está alegando que houve violação à norma jurídica (art. 966, V, do CPC/2015), o mérito do recurso especial se confunde com os próprios fundamentos para a propositura da ação rescisória, autorizando o STJ a examinar também o acórdão rescindendo (STJ, EREsp 1434604/PR, Rel. Min. Raul Araújo, Corte Especial, j. 18.08.2021).
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[1] Exemplo adaptado das explicações do Dizer o Direito sobre o referido precedente. Fonte: https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/fdec523bd0d2a84b9295c4787772944e?categoria=10&subcategoria=85&forma-exibicao=apenas-com-informativo&ordenacao=data-julgado&criterio-pesquisa=e. Acesso em 19.11.2025.
[2] No mesmo sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 82; PASSONI, Marcos Paulo. Sobre o cabimento da ação rescisória com fundamento em violação à literal proposição de súmula vinculante. Revista de Processo, v. 171, ano 34, São Paulo: RT, maio 2009. Doutrinadores como Fredie Didier Junior e Leonardo José Carneiro da Cunha consideram não ser cabível a ação rescisória por violação ao enunciado da súmula vinculante, mas, sim, por violação à norma representada pelo enunciado. “O enunciado da súmula divulga, resume e consolida uma interpretação dada a um dispositivo legal ou constitucional. E é essa a interpretação que constitui a norma jurídica, e não o texto constante na letra do dispositivo” (Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. v. 3).
[3] “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”
[4] “Ação rescisória. Expressão ‘lei’ do art. 485, V, do CPC. Não inclusão do ACT, CCT, Portaria, regulamento, súmula e orientação jurisprudencial de tribunal (nova redação em decorrência da incorporação da Orientação Jurisprudencial nº 118 da SBDI-II) – DJ 22.08.2005. Não procede pedido de rescisão fundado no art. 485, V, do CPC quando se aponta contrariedade à norma de convenção coletiva de trabalho, acordo coletivo de trabalho, portaria do Poder Executivo, regulamento de empresa e súmula ou orientação jurisprudencial de tribunal. (ex-OJ 25 da SDI-2, inserida em 20.09.00 e ex-OJ 118 da SDI-2, DJ 11.08.03)”. O art. 485, V, CPC/1973 corresponde ao art. 966, V, CPC/2015.
[5] STJ, REsp 1.663.326/RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 11.02.2020, DJe 13.02.2020, Informativo 665.
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