1. A Teoria do Cuidado como Paradigma de Equidade
A obrigação de prestar alimentos, no direito de família brasileiro, é um pilar fundamental para a garantia de uma vida digna aos filhos, encontrando amparo em princípios constitucionais e no Código Civil. Tradicionalmente, a fixação do valor da pensão alimentícia é pautada no trinômio “necessidade-possibilidade-proporcionalidade”[1]. A análise se concentra nas necessidades financeiras do alimentando e nos recursos da pessoa obrigada ao pagamento, bem como na razoabilidade da prestação. No entanto, este modelo, por vezes, ignora a assimetria social e de gênero que permeia a dinâmica familiar e o mercado de trabalho, em que o trabalho de cuidar, historicamente atribuído às mulheres, é desvalorizado e invisibilizado.
O trabalho de cuidar, que inclui atividades essenciais como a gestão do lar, a educação, o acompanhamento em saúde e a organização da rotina familiar, representa o que se denomina de “capital invisível” que não é remunerado nem juridicamente compensado. Essa invisibilidade impõe uma sobrecarga desproporcional geralmente sobre as mulheres, exacerbando as dificuldades econômicas e emocionais que elas enfrentam ao equilibrar responsabilidades profissionais e pessoais.
Nesse contexto, emerge a Teoria do Cuidado, um novo paradigma que busca reequilibrar essa assimetria. A teoria não se propõe a remunerar a mãe pelo seu trabalho, mas reconhecer sua contribuição como uma forma de alimentos in natura. A aplicação desta lente interpretativa no Direito das Famílias promove decisões mais equitativas ao atribuir um valor econômico real ao trabalho de cuidado não remunerado. Desta forma, a Teoria do Cuidado busca reinterpretar o trinômio tradicional, ampliando o conceito de proporcionalidade para incluir a ponderação do tempo e do esforço dedicados ao cuidado.
2. Fundamentação Jurídica
O dever de cuidado não é uma mera obrigação moral, mas um valor jurídico objetivo que encontra amparo direto na ordem constitucional brasileira. O artigo 227 da Constituição Federal estabelece o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, o que pressupõe um núcleo mínimo de cuidados parentais A violação deste dever legal, que se manifesta sob a forma de omissão (o non facere), representa uma ilicitude civil que atinge um bem juridicamente tutelado. A jurisprudência já pacificou o entendimento de que a omissão no dever de cuidado pode configurar o abandono afetivo, passível de indenização por dano moral[2].
A decisão do STJ que reconheceu o abandono afetivo como dano moral compensável é considerado um marco fundamental para a Teoria do Cuidado. Se a ausência de cuidado é um ato ilícito que gera uma compensação financeira, sua presença e assunção unilateral por um dos genitores deve, por coerência lógica, ser valorizada como uma contribuição. Assim, a mesma ideia de que o cuidado possui valor jurídico e consequências legais, já consolidada em um contexto negativo – o abandono afetivo -, passa a ser aplicada em um contexto positivo, consistente na fixação de alimentos.
A doutrina moderna, em sua busca por maior equidade, passou a reinterpretar os dispositivos legais do Código Civil que regulam a obrigação alimentar (artigos 1.694 a 1.710). Essa reinterpretação se baseia em princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana e o da solidariedade familiar. Ao reconhecer o trabalho não remunerado de cuidado como uma forma de contribuição, a doutrina o equipara a “alimentos in natura“, ou seja, benefícios não monetários que possuem um valor econômico intrínseco. A mãe (geralmente é esse o caso), ao assumir o cuidado exclusivo, oferta uma prestação que tem valor econômico inegável, e a pensão paga pelo genitor é uma forma de compensar o filho pela sua não participação nos cuidados diretos.
A Teoria do Cuidado, portanto, atua como uma ferramenta para combater os estereótipos de gênero que relegam à figura paterna o papel exclusivo de provedor financeiro, e à figura materna o cuidado silencioso e naturalizado. Ao valorar o trabalho de cuidado, o ordenamento jurídico reconhece a corresponsabilidade parental de forma integral, indo além da simples divisão de despesas financeiras.
Vale ressaltar que a jurisprudência do STJ tem flexibilizado o princípio da incompensabilidade dos alimentos, permitindo, excepcionalmente, que despesas pagas “in natura” (como aluguel, condomínio e IPTU) sejam abatidas da pensão fixada em pecúnia. Essa flexibilização se justifica pela necessidade de evitar o enriquecimento sem causa do beneficiário[3]. Essas decisões são de suma importância porque demonstram que o Judiciário pode, em certas circunstâncias, reconhecer e quantificar a contribuição não monetária, fornecendo um mecanismo análogo para a valoração do trabalho de cuidado.
A aplicação mais direta e explícita da Teoria do Cuidado foi adotada pela 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. O órgão julgador decidiu manter a pensão alimentícia de um pai para suas filhas, fundamentando a decisão explicitamente na Teoria do Cuidado. A relatora do acórdão, desembargadora Lenice Bodstein, reconheceu que o cuidado materno, embora não quantificado financeiramente, representa uma “contribuição efetiva e indispensável” e um “capital invisível” que compõe a corresponsabilidade parental. A decisão destacou que desconsiderar esse aporte equivale a reforçar estereótipos de gênero, e que a mãe, mesmo com limitação econômica, contribui de forma integral para o sustento das filhas por meio do cuidado direto[4].
A decisão do TJPR se destaca por sua fundamentação robusta e inovadora. Embora não obrigue outros tribunais, a decisão se qualifica como um precedente persuasivo que pode ser adotado em casos análogos.
Em resumo, a Teoria do Cuidado oferece uma lente interpretativa que reorienta o trinômio necessidade-possibilidade-proporcionalidade para uma análise mais completa, justa e adequada à realidade do caso concreto. A consolidação dessa teoria dependerá da conscientização e da vontade dos operadores do direito em romper com estereótipos enraizados e em aplicar a lei de forma a promover uma verdadeira justiça social. A discussão sobre a Teoria do Cuidado transcende o cálculo da pensão, conectando-se a um debate mais amplo e a necessidade de valorizar todas as formas de trabalho.
[1] “(…) Para a fixação dos alimentos, o julgador deve levar em consideração o trinômio necessidade, possibilidade e proporcionalidade, por meio do qual se constatam as reais necessidades do alimentado e a disponibilidade de recursos do alimentante, aferição esta procedida à luz do caso concreto e sob parâmetros de proporcionalidade e razoabilidade” (TJ-GO – Agravo de Instrumento: 5083620-97.2024.8.09.0051, Relator: Des(a). Alice Teles de Oliveira, 11ª Câmara Cível).
[2] “(…) O dever jurídico de exercer a parentalidade de modo responsável compreende a obrigação de conferir ao filho uma firme referência parental, de modo a propiciar o seu adequado desenvolvimento mental, psíquico e de personalidade, sempre com vistas a não apenas observar, mas efetivamente concretizar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, de modo que, se de sua inobservância, resultarem traumas, lesões ou prejuízos perceptíveis na criança ou adolescente, não haverá óbice para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelo filho. 6- Para que seja admissível a condenação a reparar danos em virtude do abandono afetivo, é imprescindível a adequada demonstração dos pressupostos da responsabilização civil, a saber, a conduta dos pais (ações ou omissões relevantes e que representem violação ao dever de cuidado), a existência do dano (demonstrada por elementos de prova que bem demonstrem a presença de prejuízo material ou moral) e o nexo de causalidade (que das ações ou omissões decorra diretamente a existência do fato danoso)” (STJ, REsp n. 1887697, Relatora Mini. Nancy Andrighi, j. 21/09/2021, 3ª Turma, DJe 23/09/2021).
[3] “(…) Esta Corte Superior de Justiça, sob o prisma da vedação ao enriquecimento sem causa, vem admitindo, excepcionalmente, a mitigação do princípio da incompensabilidade dos alimentos. Precedentes”. (REsp: 15019927/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 20/03/2018, Terceira Turma, DJe 20/04/2018); “(…) A jurisprudência do STJ, em regra, não admite a compensação de alimentos fixados em pecúnia com aqueles pagos in natura . Entende-se que o pagamento de forma diferente da estipulada pelo juízo deve ser entendido como mera liberalidade.1.1. Todavia, deve-se ponderar que o princípio da não compensação do crédito alimentar não é absoluto, podendo ser flexibilizado para impedir o enriquecimento indevido de uma das partes . Nesse contexto, o STJ tem admitido, excepcionalmente, a compensação de despesas pagas in natura referentes à moradia, saúde e educação, por exemplo, com o débito oriundo de pensão alimentícia. Precedentes. 2. Agravo interno desprovido” (AgInt no AREsp 1256697/MG, Rel. Min. Marco Buzzi, j. 28/09/2020, Quarta Turma, DJe 01/10/2020).
[4] Fonte: https://www.tjpr.jus.br/noticias/-/asset_publisher/9jZB/content/decis%C3%A3o-do-tjpr-considera-teoria-do-cuidado-em-pens%C3%A3o-aliment%C3%ADcia/18319.
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