I – Breve introdução
A dogmática clássica da responsabilidade civil, estruturada sobre os pilares da conduta, do nexo causal, da culpa e do dano, enfrenta, na complexidade das relações sociais e econômicas modernas, um dilema de difícil superação. O modelo tradicional, que exige a prova inequívoca do dano final e do nexo causal direto entre a ação do agente e o prejuízo experimentado pela vítima, mostra-se insuficiente para abarcar situações onde a certeza do resultado é, por sua própria natureza, incerta. É nesse contexto de insuficiência que a teoria da perda de uma chance emerge, não como um novo tipo de prejuízo ou uma teoria causal alternativa, mas como uma técnica decisória forjada pelos juízes para deslindar as dificuldades trazidas pela intromissão da incerteza no seio da responsabilidade civil. O instituto permite a reparação de um dano específico e autônomo, que reside na frustração de uma oportunidade real e séria, cuja concretização, embora provável, não era garantida.
Esse instituto, originalmente desenvolvido para casos de erro médico e falhas processuais, se manifesta e se adapta à dinâmica das relações securitárias. A abordagem abrange o exame da natureza aleatória do contrato de seguro e a responsabilidade da seguradora em sua execução. A relevância do estudo justifica-se pela crescente judicialização das relações contratuais e pela necessidade de se aplicar um critério de reparação mais justo e compatível com as complexas relações de consumo e de prestação de serviços.
II – Conceitos iniciais e pressupostos da responsabilização
A “chance” corresponde a uma oportunidade, a uma probabilidade de se obter um benefício ou de se evitar uma perda. Quando essa oportunidade é injustamente subtraída por uma ação ou omissão de terceiro, a parte afetada perde a possibilidade de atingir um resultado de seu interesse ou de evitar um evento indesejado. A questão central, portanto, não é a incerteza do resultado final, mas a certeza de que a oportunidade de tentar obtê-lo foi definitivamente frustrada.
Diferentemente de um dano hipotético ou de uma mera expectativa, a chance perdida é considerada um dano autônomo e patrimonialmente mensurável. O que se indeniza não é o valor integral do ganho hipotético, mas sim a perda da oportunidade de lutar por ele. Esse dano é certo e específico, e sua reparação é fixada com base na probabilidade de sucesso que foi tolhida pela conduta do agente.
Para que a teoria da perda de uma chance seja aplicável, a jurisprudência e a doutrina brasileira exigem a configuração de pressupostos específicos, que distinguem a chance reparável de uma simples expectativa vaga:
- Pré-existência de uma chance “real e séria”: a oportunidade frustrada deve ser uma chance que, no curso normal dos acontecimentos, seria séria e concreta, e não uma mera esperança ou especulação. É um critério jurídico que busca um mínimo de probabilidade de êxito para que a chance seja digna de tutela. A jurisprudência tem sido cautelosa, negando a reparação de “danos fantasiosos” ou de “meras expectativas”.
- Conduta culposa (ação ou omissão) do agente: é imprescindível a comprovação de dolo ou culpa do réu, seja por negligência, imprudência ou imperícia. A falha na conduta é o elemento desencadeador da responsabilidade civil, e deve ser devidamente descrita e comprovada pelo lesado.
- Nexo causal entre a conduta e a perda da chance: este é o elemento central e distintivo da teoria. O nexo de causalidade se estabelece não entre a conduta do agente e o dano final (o resultado incerto), mas sim entre a conduta e a perda da chance em si. O agente não responde pelo resultado que a vítima deixou de obter, mas sim por tê-la privado da oportunidade de obtê-lo.
- Certeza do infortúnio (frustração da chance): A conduta do agente substitui a incerteza do resultado aleatório pela certeza de que a oportunidade de se buscar o benefício não mais existe. A chance é definitivamente frustrada, e o processo aleatório desejado se encerra por intervenção de terceiros.
III – Aplicabilidade aos contratos de seguro
O contrato de seguro é um pacto intrinsecamente aleatório, no qual o segurador assume o risco de um evento futuro e incerto (o sinistro), em troca do prêmio pago pelo segurado. A obrigação principal do segurador, a de indenizar, nasce somente com a ocorrência desse evento. A natureza aleatória do contrato reside no fato de que a vantagem de uma das partes (o segurado) depende de um evento incerto e imprevisível, o que não a isenta da aplicação de princípios como a boa-fé objetiva, que impõe deveres de conduta recíprocos e cooperativos entre as partes, especialmente após o sinistro.
A aplicação da teoria da perda de uma chance em contratos de seguro se dá de maneira peculiar. O instituto não se refere à responsabilidade da seguradora em relação ao sinistro em si, que é sua obrigação primária. Em vez disso, a teoria se manifesta em relação a uma conduta posterior da seguradora que prejudica o segurado. A responsabilidade da seguradora, que geralmente é de resultado (pagar a indenização), pode se aproximar de uma obrigação de meio na gestão do sinistro. Se a seguradora age com negligência na regulação ou se atrasa injustificadamente no pagamento da indenização, ela pode não ter causado o dano original (e.g., um incêndio), mas causa um novo dano: a perda da chance do segurado de mitigar os prejuízos, retomar suas atividades ou realizar um investimento com o capital da indenização.
A aplicação da teoria da perda de uma chance atua como um mecanismo de controle da boa-fé objetiva e da diligência da seguradora. A recusa injustificada ou o atraso prolongado no pagamento de um sinistro, por exemplo, pode não ter causado o sinistro em si, mas pode ter frustrado a oportunidade do segurado de utilizar o capital segurado para, por exemplo, adquirir um novo equipamento ou reabrir seu negócio. O dano, nesse caso, é a perda da chance de recuperar a saúde financeira da empresa ou de retomar sua atividade, o que vai além do valor de reposição do bem segurado. Este é o ponto crucial de aplicação da teoria nos seguros, servindo como uma ferramenta para sancionar a desídia da seguradora na fase de regulação e pagamento do sinistro.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) demonstra a ampla aceitação e consolidação da teoria da perda de uma chance no ordenamento jurídico brasileiro. O tribunal a tem aplicado em uma variedade de contextos, servindo de base para a sua aplicação em contratos de seguro. Casos notórios incluem a falha de advogados em processos judiciais, erros médicos que reduziram as chances de cura do paciente, e até mesmo em competições e programas de televisão, onde a conduta ilícita de um terceiro eliminou a chance de um participante de competir por um prêmio final.
O STJ tem sido firme ao exigir que, para a aplicação da teoria, a chance seja séria e real e que haja uma probabilidade de sucesso não fantasiosa. Nesse sentido:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÕES EM BOLSA DE VALORES. VENDA PROMOVIDA SEM AUTORIZAÇÃO DO TITULAR. RESPONSABILIDADE CIVIL . PERDA DE UMA CHANCE. DANO CONSISTENTE NA IMPOSSIBILIDADE DE NEGOCIAÇÃO DAS AÇÕES COM MELHOR VALOR, EM MOMENTO FUTURO. INDENIZAÇÃO PELA PERDA DA OPORTUNIDADE. 1. “A perda de uma chance é técnica decisória, criada pela jurisprudência francesa, para superar as insuficiências da responsabilidade civil diante das lesões a interesses aleatórios. Essa técnica trabalha com o deslocamento da reparação: a responsabilidade retira sua mira da vantagem aleatória e, naturalmente, intangível, e elege a chance como objeto a ser reparado”(CARNAÚBA, Daniel Amaral. A responsabilidade civil pela perda de uma chance: a técnica na jurisprudência francesa. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, n . 922, ago, 2012). 2. Na configuração da responsabilidade pela perda de uma chance não se vislumbrará o dano efetivo mencionado, sequer se responsabilizará o agente causador por um dano emergente, ou por eventuais lucros cessantes, mas por algo intermediário entre um e outro, precisamente a perda da possibilidade de se buscar posição mais vantajosa, que muito provavelmente se alcançaria, não fosse o ato ilícito praticado. 3. No lugar de reparar aquilo que teria sido (providência impossível), a reparação de chances se volta ao passado, buscando a reposição do que foi. É nesse momento pretérito que se verifica se a vítima possuía uma chance. É essa chance, portanto, que lhe será devolvida sob a forma de reparação. 4. A teoria da perda de uma chance não se presta a reparar danos fantasiosos, não servindo ao acolhimento de meras expectativas, que pertencem tão somente ao campo do íntimo desejo, cuja indenização é vedada pelo ordenamento jurídico, mas sim um dano concreto (perda de probabilidade). A indenização será devida, quando constatada a privação real e séria de chances, quando detectado que, sem a conduta do réu, a vítima teria obtido o resultado desejado. 5. No caso concreto, houve venda de ações sem a autorização do titular, configurando o ato ilícito . O dano suportado consistiu exatamente na perda da chance de obter uma vantagem, qual seja a venda daquelas ações por melhor valor. Presente, também, o nexo de causalidade entre o ato ilícito (venda antecipada não autorizada) e o dano (perda da chance de venda valorizada), já que a venda pelo titular das ações, em momento futuro, por melhor preço, não pode ocorrer justamente porque os papéis já não estavam disponíveis para serem colocados em negociação. 6. Recurso especial a que se nega provimento”. (STJ – REsp: 1540153 RS 2015/0082053-9, Relator.: Ministro Luis Felipe Salomão,, Data de Julgamento: 17/04/2018, T4 – Quarta turma, Data de Publicação: DJe 06/06/2018).
A quantificação da indenização pela perda da chance é o maior desafio prático da teoria. O dano não é o resultado final, mas a probabilidade frustrada. Dessa forma, a indenização deve ser fixada seguindo os critérios de proporcionalidade e razoabilidade, com uma equivalência entre o dano sofrido e as consequências do ato lesivo. O valor indenizável não é o total do ganho hipotético, mas um percentual dele, correspondente à probabilidade de sucesso que foi perdida.
Além disso, embora a regra geral em demandas sobre indenização securitária seja de que cabe à seguradora provar as causas excludentes da cobertura, no caso da perda da chance, a dinâmica se inverte. O ônus da prova recai sobre o segurado, que deve demonstrar a negligência do agente e, principalmente, a existência de uma chance real e séria, que foi frustrada. A atuação de um corretor de seguros especialista, com conhecimento técnico e jurídico, além de um acompanhamento de advogado, torna-se crucial para navegar por esses desafios. Se há demora ou recusa injustificada no pagamento de uma indenização, isso pode causar ao segurado a perda de uma oportunidade valiosa.
O papel dos profissionais do mercado (corretores e advogados) é vital para mitigar os conflitos e garantir um desfecho justo, dada a complexidade técnica e jurídica que envolve a avaliação da probabilidade de uma chance perdida.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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