A dissolução do vínculo conjugal ou da união estável impõe a necessidade de partilha do patrimônio comum, visando à justa divisão dos bens adquiridos durante a convivência. Tradicionalmente, a petição inicial e a contestação delimitam o escopo da lide, incluindo os bens a serem partilhados.
Esse rito processual busca conferir segurança jurídica e previsibilidade às partes envolvidas. No entanto, o cenário da partilha de bens em ações de divórcio nem sempre se mostra linear.
Bens supervenientes, neste contexto, são aqueles que, embora pertencentes ao patrimônio comum do casal (adquiridos na constância do casamento ou união estável), tornam-se conhecidos ou têm sua existência confirmada apenas após a fase de contestação da ação de divórcio. Essa situação pode ocorrer por diversos motivos, como o desconhecimento prévio de uma das partes sobre a existência de determinado ativo, a ocultação deliberada por um dos cônjuges, ou ainda por se tratarem de direitos que se concretizam (como o recebimento de valores) durante o curso do próprio processo judicial.
A relevância da flexibilização processual para a efetividade da justiça é um ponto crucial neste debate. A rigidez processual, embora fundamental para a organização e a celeridade dos trâmites, pode, em certos casos, impedir a concretização da justiça material, especialmente em demandas complexas como as de família.
A admissão da partilha de bens supervenientes no curso da ação principal reflete uma evolução jurisprudencial que busca a efetividade da tutela jurisdicional e a integralidade da partilha. Essa abertura para a inclusão de bens que surgem ou são descobertos posteriormente não é meramente uma exceção à regra processual; é, na verdade, uma manifestação da primazia da justiça material sobre a formal em Direito de Família. A adesão estrita às formalidades processuais, como a preclusão ou a estabilização da demanda, embora visem à segurança jurídica, poderia levar a resultados injustos, por exemplo, privando uma das partes de sua parcela legítima do patrimônio devido à ignorância inicial ou à ocultação por parte do outro.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reconhecido a possibilidade de um pedido genérico de partilha na petição inicial de divórcio. Essa permissão se justifica pela inerente dificuldade que as partes podem ter em listar todos os bens e direitos de forma exaustiva e individualizada no momento do ajuizamento da demanda. A Ministra Nancy Andrighi, em caso paradigma, afirmou que “é possível que as partes não tenham acesso a todas as informações e documentos relativos a todos os bens individualmente considerados quando do ajuizamento da demanda”[1]. Essa falta de acesso pode decorrer de diversos fatores, como a gestão exclusiva do patrimônio por um dos cônjuges ou a própria natureza de certos direitos que ainda não se concretizaram. É importante ressaltar que, embora admitido inicialmente, o pedido genérico de partilha possui uma natureza temporária. A quantificação e individualização dos bens devem ser feitas em algum momento do processo, não se permitindo que a partilha permaneça indefinida.
O caso concreto levado ao STJ envolveu um casal casado sob o regime de comunhão universal de bens por mais de 20 anos. O ex-marido ajuizou a ação de divórcio com um pedido genérico de partilha do patrimônio. O bem superveniente em questão era um crédito oriundo de previdência pública, referente ao pagamento atrasado de aposentadoria especial, que foi reconhecido em uma ação previdenciária julgada procedente durante o curso do processo de divórcio. A ex-esposa requereu a inclusão desses valores na partilha logo após a audiência de instrução e julgamento, na primeira oportunidade que teve de se manifestar sobre o fato novo.
O tribunal de segunda instância havia entendido que o pedido de inclusão dos valores era intempestivo e não viu excepcionalidade que justificasse a pensão alimentícia. No entanto, o STJ reformou essa decisão. Os fundamentos da decisão da Terceira Turma do STJ foram claros: a Ministra Nancy Andrighi enfatizou que o julgador deve considerar os bens pertencentes ao patrimônio comum em todo o curso da demanda, não se limitando aos bens listados na petição inicial.
A interpretação do art. 435 do Código de Processo Civil (CPC) foi central para a decisão. Embora o dispositivo autorize a inclusão de novos documentos “a qualquer tempo”, a relatora esclareceu que essa expressão não permite a juntada indiscriminada de documentos em qualquer fase ou grau de jurisdição. A inclusão deve ser feita na “primeira oportunidade em que se puder falar do fato novo, desde que a prova esteja disponível à parte, ou no primeiro instante em que se possa opor às alegações da parte contrária”. No caso analisado, a boa-fé da ex-esposa foi demonstrada, pois ela agiu na primeira oportunidade em que os créditos se tornaram conhecidos e disponíveis.
O julgador, nesse sentido, deverá considerar os bens pertencentes ao patrimônio comum em todo o curso da demanda, não estando limitado apenas aos bens listados na petição inicial. Além disso, deve valorar a juntada a partir da boa-fé processual.
O reconhecimento do pedido genérico de partilha e a posterior inclusão de bens supervenientes atuam, portanto, como um mecanismo de combate à má-fé e à sonegação patrimonial em ações de divórcio. Se as partes fossem estritamente limitadas ao que foi inicialmente declarado, um cônjuge agindo de má-fé poderia deliberadamente omitir ou ocultar ativos, sabendo que estes escapariam da partilha. Ao permitir a inclusão de ativos descobertos posteriormente, especialmente quando a outra parte agiu de boa-fé ou estava genuinamente desinformada, o tribunal desincentiva tal comportamento e assegura uma divisão mais completa e justa do patrimônio comum.
Outro fundamento essencial é a ausência de prazo para a partilha. A Quarta Turma do STJ, por unanimidade, entendeu que “a partilha de bens é direito potestativo que não se sujeita à prescrição ou à decadência, podendo ser requerida a qualquer tempo por um dos ex-cônjuges, sem que o outro possa se opor”. (REsp n. 1.817.812/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 3/9/2024, DJe de 20/9/2024)
Essa imprescritibilidade da partilha é um forte alicerce para a inclusão de bens supervenientes, pois o direito à meação sobre o patrimônio comum permanece íntegro e exigível a qualquer momento.
Em suma, a tese da partilha de bens supervenientes após a contestação em ações de divórcio encontra diversas aplicações práticas, garantindo que a divisão patrimonial seja a mais completa e justa possível. Um dos exemplos mais claros, e que serviu de caso paradigma para o STJ, são os créditos de previdência pública, como aposentadoria especial ou valores atrasados de benefícios previdenciários. Conforme a decisão do STJ, valores referentes a aposentadoria especial ou atrasados de benefícios previdenciários, concedidos durante o casamento, são partilháveis mesmo que o recebimento ocorra após a contestação ou o divórcio. Isso se deve ao entendimento de que o direito a esses valores foi adquirido na constância do matrimônio, integrando o patrimônio comum do casal, independentemente do momento de sua efetiva percepção.
Outra aplicação relevante ocorre quando bens imóveis ou outros ativos são descobertos durante o processo. Se um imóvel, uma conta bancária, um investimento ou qualquer outro ativo que deveria compor o patrimônio comum for descoberto ou sua existência for comprovada durante o curso da ação de divórcio, é plenamente possível requerer sua inclusão na partilha. Isso é particularmente importante em situações onde um dos cônjuges pode ter ocultado patrimônio. Desde que haja boa-fé por parte de quem requer a inclusão e o pedido seja feito na primeira oportunidade em que se teve conhecimento do bem, a jurisprudência tende a admitir essa inclusão. Da mesma forma, indenizações trabalhistas ou outras verbas recebidas após a contestação também são passíveis de partilha.
Com efeito, se um documento que comprova a existência de um bem comum surge após a contestação, sua apresentação é crucial para a partilha justa. Os tribunais estaduais, seguindo a lógica do STJ, tendem a aceitá-lo, desde que a parte que o apresenta não tenha agido com má-fé e a outra parte tenha a chance de se manifestar.
Essa admissão traz implicações significativas e múltiplos benefícios para as partes envolvidas e para o sistema judiciário. Um dos principais benefícios é a redução da litigiosidade e da necessidade de novas ações, especialmente as de sobrepartilha. Ao permitir que bens descobertos ou que se concretizam durante o processo de divórcio sejam incluídos na mesma ação, evita-se a instauração de um novo processo judicial para a divisão desses ativos.
Isso simplifica o trâmite processual, reduzindo consideravelmente os custos financeiros e o tempo de tramitação para as partes, além de aliviar a carga de trabalho do judiciário. Ademais, esse cenário fomenta um ambiente de negociação mais transparente, o que pode levar a acordos mais amigáveis e abrangentes, diminuindo o desgaste emocional e financeiro de litígios prolongados.
[1] Fonte: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/paginas/comunicacao/noticias/2025/05082025-terceira-turma-admite-partilha-de-bem-superveniente-requerida-apos-a-contestacao-na-acao-de-divorcio.aspx.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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