A fraude à execução é um instituto concebido para salvaguardar a efetividade da execução e a integridade do patrimônio do devedor. Ele se materializa quando o devedor, no curso de um processo executivo, procede à alienação ou oneração de bens com o propósito deliberado de frustrar a satisfação do crédito. É crucial notar que este conceito se distingue da fraude contra credores, que, por sua vez, ocorre em momento anterior ao ajuizamento da ação judicial, configurando um vício social do negócio jurídico.
O presente texto visa analisar a possibilidade de reconhecimento da fraude à execução no caso de doação de bens imóveis a familiares e suas consequências jurídicas. É imperativo esclarecer que, no contexto da fraude à execução, o ato não é “anulado”, mas sim declarado ineficaz em relação ao exequente. A distinção terminológica é mais do que uma questão semântica; ela é fundamental para a correta compreensão das consequências jurídicas e dos caminhos processuais. Enquanto a fraude contra credores leva à anulabilidade do negócio jurídico, exigindo uma ação autônoma (ação pauliana), a fraude à execução resulta na ineficácia do ato perante o credor, permitindo que a execução prossiga sobre o bem como se a alienação não tivesse ocorrido.
Pois bem. O ato praticado em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente, conforme estabelecido no art. 792, §1º, do Código de Processo Civil. A ineficácia significa que o negócio jurídico de alienação ou oneração é válido entre as partes que o celebraram (devedor e terceiro), mas não produz qualquer efeito jurídico perante o credor exequente. Isso permite que o credor prossiga com a penhora e expropriação do bem como se a alienação fraudulenta nunca tivesse ocorrido. Diferentemente do que ocorre no caso da fraude contra credores, na fraude à execução não há necessidade de uma ação autônoma para desconstituir o ato; a ineficácia pode ser declarada incidentalmente no próprio processo de execução, mediante simples petição ou em embargos de terceiro.
O art. 792 constitui o pilar legal da fraude à execução, delineando as situações em que a alienação ou oneração de bens será considerada fraudulenta. As hipóteses elencadas visam abranger as principais estratégias de esvaziamento patrimonial que podem prejudicar a satisfação do crédito do exequente. Vejamos cada uma:
- Inciso I: A fraude se configura quando pender sobre o bem ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver.
- Inciso II: Caracteriza-se a fraude quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828 do CPC.
- Inciso III: A fraude ocorre quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude.
- Inciso IV: Esta é a hipótese de maior relevância para a presente análise, pois não exige o registro prévio da penhora. A fraude se configura “quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”. Este inciso foca na consequência (insolvência) da ação do devedor durante um litígio pré-existente. A amplitude desse dispositivo confere ao sistema jurídico a flexibilidade necessária para combater táticas de blindagem patrimonial cada vez mais sofisticadas, que intencionalmente se esquivam dos requisitos formais de publicidade.
- Inciso V: Abrange os demais casos expressos em lei que possam configurar fraude à execução.
Para a configuração da fraude à execução são necessários os seguintes requisitos:
- Existência de demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência. A mera existência de uma dívida não é suficiente; é necessária uma ação judicial.
- Prejuízo ao credor (eventus damni). A alienação do bem deve ter resultado na insolvência do devedor, ou seja, seu patrimônio remanescente tornou-se insuficiente para cobrir a dívida.
- Má-fé do devedor (consilium fraudis). A intenção de frustrar a execução é um elemento subjetivo. Embora a Súmula 375 do STJ[1], em sua aplicação original, exija a prova da má-fé do terceiro adquirente quando não há registro, a jurisprudência tem mitigado essa exigência em doações familiares, conforme veremos adiante.
De acordo com o enunciado da referida Súmula, para que a fraude à execução seja reconhecida, o credor dispõe de duas vias alternativas para comprovar a fraude:
- Registro da penhora. o credor comprova que a penhora já estava devidamente registrada na matrícula do imóvel antes da alienação. O registro confere publicidade erga omnes e gera uma presunção absoluta de conhecimento por parte de qualquer terceiro adquirente, tornando desnecessária a prova de sua má-fé.
- Prova da má-fé do adquirente. Na ausência de registro prévio da penhora, o ônus da prova da má-fé do terceiro adquirente recai sobre o credor. Este deve demonstrar, por outros meios, que o adquirente tinha conhecimento da existência de demanda judicial capaz de reduzir o alienante à insolvência no momento da aquisição do bem.
A Súmula 375 consolida um entendimento que prioriza a publicidade registral e a proteção da boa-fé do terceiro adquirente, buscando equilibrar os interesses do credor e a segurança do mercado imobiliário. No entanto, alguns casos concretos demonstraram a necessidade de relativização do enunciado, como em doações intrafamiliares, onde a presunção de boa-fé do terceiro adquirente se torna menos defensável.
Um caso paradigmático é o EREsp 1.896.456/SP, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, julgado pela Segunda Seção do STJ em 12 de fevereiro de 2025. O cerne da controvérsia envolvia a doação de um imóvel realizada por uma mãe (executada) para seus filhos, com reserva de usufruto, após uma decisão judicial que havia desconsiderado a personalidade jurídica de uma empresa familiar dissolvida irregularmente, em um cenário de insolvência. A questão central era determinar se essa doação configuraria fraude à execução, mesmo sem o registro da penhora na matrícula do imóvel.
A Segunda Seção do STJ, em decisão unânime, estabeleceu que o registro da penhora na matrícula do imóvel é dispensável para o reconhecimento de fraude à execução em hipóteses de doação entre parentes que configurem uma clara tentativa de blindagem patrimonial em detrimento de credores. De acordo com o Relator “a caracterização de má-fé decorre do vínculo familiar entre o devedor e o donatário e do contexto fático, como o conhecimento da pendência de demandas judiciais e a permanência do bem no núcleo familiar, ainda que sem registro prévio da penhora.”
Antes desse precedente, a 4ª Turma do STJ já vinha adotando um entendimento mais flexível em relação à dispensa do registro da penhora em doações familiares (para exemplificar: AgInt no AREsp n. 1413941/MT , relator Ministro Marco Buzzi, julgado em 11/4/2019). No mesmo sentido:
“(…) Consoante entendimento desta Corte Superior, considera-se fraude à execução a transferência de bens de ascendente para descendente quando, ao tempo da doação, tramitava contra o devedor alienante demanda capaz de reduzi-lo à insolvência, sendo inaplicável, nesta hipótese, a proteção prevista na Súmula 375/STJ. Precedentes. 2. Agravo interno improvido”. (AgInt no REsp 2112100/ SP, Relator Min. Raul Araújo, j. 01/07/2024, Quarta Turma, DJe 02/08/2024).
“(…) A exegese do artigo 792, IV, do CPC/2015 (art. 593, II, do CPC/73), de se fixar a citação como momento a partir do qual estaria configurada a fraude de execução, exsurgiu com o nítido objetivo de proteger terceiros adquirentes de boa fé . No caso, não há terceiro de boa-fé a ser protegido, havendo elementos nos autos a indicar que a devedora doou intencionalmente e de má-fé todo o patrimônio ao próprio filho, quando ambos já tinham ciência da demanda capaz de reduzi-la à insolvência. 3. Assim, à vista das peculiaridades do caso concreto, bem delineadas na decisão do Juízo a quo, deve ser confirmada a decretação da fraude à execução, mesmo que o ato da transferência dos bens tenha ocorrido antes da citação formal da devedora no processo de execução. 4 . Agravo interno a que se nega provimento”. (AgInt no REsp 1885750/AM, Relator Min. Raul Araújo, j. 20/04/2021, Quarta Turma, DJe 28/04/2021).
Contudo, vale um alerta: esses precedentes não indicam que toda e qualquer doação à familiar deve ser considerada como fraudulenta. Recentemente, o próprio Ministro Raul Araújo, no julgamento do AgInt dos EDcl no AREsp 2736851/SP (j. 11.06.2025), considerou que a doação de imóvel litigioso à esposa do devedor em momento anterior à citação do executado, e até ao próprio ajuizamento da execução, não demonstra a má-fé capaz de invalidar o ato. Em verdade, a depender do caso concreto, poderá haver ou não invalidação da doação. Vejamos alguns julgados em sentido contrário, que demonstram, a partir das particularidades levadas ao STJ, que não é possível presumir a má-fé pela simples existência de relação de parentesco:
AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIROS. PENHORA SOBRE IMÓVEL. AUSÊNCIA DE REGISTRO DO CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. IRRELEVÂNCIA. SÚMULA 84 /STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, a promessa de doação de imóvel a filho, decorrente de acordo judicial celebrado por ocasião de divórcio, é válida e possui eficácia de escritura pública. O que afasta, portanto, a configuração de fraude contra credores em razão da falta de registro da sentença homologatória da futura doação, realizada antes do ajuizamento da execução. 2. A questão controvertida foi decidida nos estritos limites do quadro fático delineado pelo acórdão recorrido, sendo prescindível o reexame de provas. 3. Para que haja o prequestionamento é necessário que as instâncias ordinárias examinem a questão controvertida, não sendo imperiosa a menção expressa do artigo debatido. 4. O mero não conhecimento ou improcedência de recurso interno não enseja a automática condenação à multa do art. 1.021, § 4º, do NCPC, devendo ser analisado caso a caso. 5. Agravo interno desprovido.” (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.580.631/SP, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 18/5/2020, DJe de 26/5/2020.
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. SEQUESTRO DE BEM IMÓVEL. DOAÇÃO ANTERIOR. SEPARAÇÃO. HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL. DONATÁRIO. FILHO. FALTA DE REGISTRO DO ATO. IRRELEVÂNCIA. COMPOSIÇÃO DO PATRIMÔNIO DO DONATÁRIO. SÚMULA 7/STJ. 1. Decisão recorrida que se encontra em consonância com a jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que ‘Imóveis partilhados pelo casal e parcialmente doados a seus filhos, em acordo homologado antes do ajuizamento da execução, podem ser excluídos da constrição por efeito de embargos de terceiro, opostos por possuidores de boa-fé, ainda que a aludida partilha não tenha sido levada a registro’ (REsp 617.861/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ de 28.5.2008) 2. O aresto impugnado, ao reconhecer que o bem já compunha o patrimônio do donatário “à época da investigação, da ação e da constrição, tendo sido sua posse e propriedade transferidas aos embargantes muito antes, por acordo homologado em separação consensual nos idos de 1977” (fl. 238), o faz com base nos elementos de convicção da demanda. Incidência da Súmula 7/STJ, portanto. 3. Agravo regimental a que se nega provimento”. (AgRg no REsp n. 1.006.873/RJ, Relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 1/10/2015, DJe de 21/10/2015).
Perceba que a análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça depende, necessariamente, de um estudo pormenorizado sobre o caso concreto. Portanto, é ideal consultar um advogado ANTES da realização de atos gratuitos, especialmente envolvendo relações familiares.
[1] A jurisprudência do STJ, com base na Súmula 375 do STJ, afasta, em regra, a configuração de fraude à execução na ausência de registro de constrição à época da alienação, reforçando a presunção de boa-fé do agravante. “Súmula 375, STJ: O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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