Como decorrência do princípio da singularidade, analisado no tópico anterior, a impugnação do ato judicial deve ser realizada por meio do recurso adequado para tal mister, sob pena de inadmissão da via recursal utilizada por ausência de um dos requisitos de admissibilidade (cabimento).
Não obstante, em certas situações em que há dúvida objetiva a respeito do recurso cabível para impugnar determinada decisão, admite-se o recebimento de recurso inadequado como se adequado fosse, de modo a não prejudicar a parte recorrente por impropriedades do ordenamento jurídico ou por divergências doutrinárias e jurisprudenciais.
A essa possibilidade de conversão, de troca de um recurso por outro, dá-se o nome de fungibilidade, não contemplada expressamente no CPC/1973, mas que ganha força no Código vigente. O § 3º do art. 1.024, por exemplo, prevê a possibilidade de recebimento e processamento dos embargos de declaração como agravo interno, entendimento que já era contemplado na jurisprudência (STJ, EDcl nos EAREsp 252.217/ES, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 3ª Seção, julgado em 11.06.2014). No âmbito dos recursos extraordinários, o CPC atual também admite a fungibilidade entre o REsp e o RE. É o que se pode perceber da leitura dos arts. 1.032 e 1.033:
Art. 1.032. Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de 15 (quinze) dias para que o recorrente demonstre a existência de repercussão geral e se manifeste sobre a questão constitucional.
Parágrafo único. Cumprida a diligência de que trata o caput, o relator remeterá o recurso ao Supremo Tribunal Federal, que, em juízo de admissibilidade, poderá devolvê-lo ao Superior Tribunal de Justiça.
Art. 1.033. Se o Supremo Tribunal Federal considerar como reflexa a ofensa à Constituição afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado, remetê-lo-á ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento como recurso especial.
A admissão do princípio da fungibilidade exigia, segundo a doutrina majoritária, a presença de dois requisitos: dúvida objetiva sobre qual é o recurso cabível (inexistência de erro grosseiro) e interposição do recurso “inadequado” no prazo do recurso cabível.
Havia, contudo, corrente contrária que dispensava, com acerto, o requisito da interposição do recurso “inadequado” no prazo do recurso reputado cabível. Segundo tal corrente, para aplicação do princípio da fungibilidade bastaria que houvesse dúvida objetiva a respeito do recurso cabível e que a interposição ocorresse no prazo do recurso escolhido pela parte para o caso concreto.
Com o atual Código de Processo Civil, excetuados os embargos de declaração, o prazo para interposição dos demais recursos (apelação; agravo de instrumento; agravo interno; recurso ordinário; recurso especial e extraordinário; agravo em recurso especial ou extraordinário; e embargos de divergência) será de quinze dias. Creio, assim, que a discussão quanto à observância (ou não) do prazo recursal para aplicação da fungibilidade só terá relevância quando a parte pretender efetivamente impugnar a decisão, mas, para tanto, utilizar os embargos de declaração. Ainda assim, se adotada a precaução anterior – interposição no prazo do recurso escolhido –, não deve mais haver discussão. Exemplo: embargos de declaração opostos contra decisão do relator que nega provimento a recurso de apelação por este ser contrário à Súmula do STJ. O recurso correto (adequado) seria o agravo interno (art. 1.021). Pode o relator, por aplicação do princípio da fungibilidade, receber os embargos como agravo interno,[1] desde que a parte tenha interposto o recurso inadequado (embargos de declaração) no prazo do recurso adequado (agravo interno), ou seja, quinze dias.
Particularmente, considero possível que, em caso de dúvida objetiva acerca da via recursal cabível, o mais razoável é desconsiderar o requisito da interposição do recurso “errôneo” no prazo daquele tido por cabível. No exemplo anterior, interpostos os embargos de declaração no prazo de 15 dias (prazo do agravo interno), e tendo o relator percebido o equívoco, deve ser aplicado o princípio da fungibilidade.
Em relação à apelação e ao agravo de instrumento, há quem entenda que o princípio da fungibilidade desapareceu do nosso sistema recursal. Segundo esse entendimento, porque os juízos de admissibilidade são distintos, não poderia o juiz monocrático receber a apelação como agravo de instrumento, nem o tribunal receber o agravo de instrumento como apelação. Esse é o entendimento do STJ firmado na vigência do CPC/1973:
“Direito processual civil. Impossibilidade de conhecimento de apelação interposta contra decisão que exclui um dos litisconsortes da relação jurídica e determina o prosseguimento da execução contra os demais devedores.
É inviável o conhecimento de apelação interposta contra decisão que exclui um dos litisconsortes da relação jurídica e determina o prosseguimento da execução contra os demais devedores. Referido equívoco constitui erro inescusável, por consequência, inaplicável o princípio da fungibilidade recursal em face do entendimento do STJ segundo o qual, nesses casos, seria cabível agravo de instrumento, e não apelação” (AgRg no REsp 1.184.036/DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 07.02.2013).
“Agravo regimental. Agravo de instrumento. Cobrança de cotas condominiais. Exclusão de réus do polo passivo da lide sem extinção do processo. Decisão interlocutória. Agravo de instrumento. Recurso cabível.
1. O julgado que exclui litisconsorte do polo passivo da lide sem extinguir o processo é decisão interlocutória, recorrível por meio de agravo de instrumento, e não de apelação, cuja interposição, nesse caso, é considerada erro grosseiro.
2. Agravo regimental desprovido” (AgRg no Ag 1.329.466/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 10.05.2011).
A despeito das ponderações, particularmente sempre considerei que o princípio ainda poderia ser aplicado. Aliás, o fato de a lei ser dúbia, os doutrinadores atritarem entre si e a jurisprudência não ter uniformidade, não poderia constituir razão suficiente para subtrair do litigante o duplo grau de jurisdição. Bastaria que o recorrente, havendo dúvida sobre a natureza do ato decisório, interpusesse agravo de instrumento, na forma adequada. Entendendo o tribunal que esse era o recurso adequado, como tal o processaria; em caso contrário, remetê-lo-ia ao juízo de origem.
Na vigência do CPC/1973 realmente a hipótese de aplicação da fungibilidade entre apelação e agravo era remota. Lembre-se de que no regime do CPC/1973 o agravo era cabível, genericamente, contra “decisões interlocutórias” (art. 522), razão pela qual dificilmente se cogitava de dúvida objetiva e, por conseguinte, em erro capaz de permitir a aplicação do princípio da fungibilidade. Entretanto, o CPC estabelece um rol de hipóteses de cabimento do agravo de instrumento (art. 1.015), o que poderá ocasionar mais dúvidas com relação ao recurso adequado, bem como sobre o cabimento ou não de recurso.
De toda forma, para que se aplica a fungibilidade, que é considerada uma exceção, devem estar preenchidos os seguintes requisitos: “a) dúvida objetiva quanto ao recurso a ser interposto, b) inexistência de erro grosseiro e c) observância do prazo do recurso cabível” (AgInt no AREsp 1.479.391/SP, Relator Ministro Marco Buzzi, 4ª Turma, julgado em 26/11/2019, DJe de 27/11/2019).
Em relação ao primeiro requisito, há precedente no STJ admitindo a relativização do conceito quando o equívoco na interposição do recurso cabível decorrer da prática de ato do próprio órgão julgador (STJ, 2ª Seção, EAREsp 230380-RN, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 13/09/2017). No caso concreto, embora a decisão do juiz singular não tenha colocado fim ao processo de execução, foi tratada como uma sentença, inclusive em relação ao nomen iuris e registro. Justamente pelo equívoco que induziu a parte prejudicada pela decisão, houve aplicação da fungibilidade, já que o recurso cabível era o agravo de instrumento.
Para finalizar, vejamos alguns casos em que a jurisprudência NÃO admitiu a aplicação do princípio da fungibilidade recursal:
- “A decisão que declara a inexigibilidade parcial da execução é recorrível mediante agravo de instrumento, configurando erro grosseiro a interposição de apelação, o que inviabiliza a aplicação do princípio da fungibilidade recursal” (STJ, 2ª Turma. REsp 1947309-BA, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 7/2/2023).
- “O princípio da fungibilidade recursal não é aplicável à situação em que o recurso ordinário constitucional é manejado fora das hipóteses taxativamente enumeradas no art. 105, II, do texto constitucional” (STJ, 2ª Turma, Pet 15.753-BA, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 15/8/2023).
- “É manifestamente incabível pedido de reconsideração em face de acórdão, bem como o seu recebimento como embargos de declaração ante a inadmissibilidade da incidência do princípio da fungibilidade recursal quando constatada a ocorrência de erro inescusável” (STJ, 4ª Turma, RCD no AgRg no HC 746844-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 8/11/2022).
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”.
.
.
.
Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
Facebook: https://www.facebook.com/elpidiodonizetti
Instagram: https://www.instagram.com/elpidiodonizetti
LinkedIn:https://www.linkedin.com/in/elp%C3%ADdio-donizetti-advogados-4a124a35/
[1] O STJ entende que é possível o recebimento de embargos de declaração como agravo regimental, desde que aqueles contenham exclusivo intuito infringente (ver: STJ, AgRg no AREsp 100.553/CE, j. 01.10.2013; STJ, EDcl na Rcl 8.367/RS, j. 25.09.2013).