O tratamento prático dos pressupostos e requisitos processuais, da legitimidade ad causam e do interesse processual é bastante semelhante. Todas essas matérias são cognoscíveis de ofício enquanto não ocorrer o trânsito em julgado. A exceção fica por conta da convenção de arbitragem, pressuposto processual de validade que só pode ser reconhecido se alegado pela parte.
Tendo em vista a semelhança e o fato de o Código não mais adotar em nosso sistema processual a categoria denominada “condições da ação”, trataremos da legitimidade ad causam e do interesse processual também como requisitos processuais. Vejamos cada um deles.
a) Interesse processual ou interesse de agir
Relaciona-se com a necessidade ou utilidade da providência jurisdicional solicitada e com a adequação do meio utilizado para obtenção da tutela. Em outras palavras, a prestação jurisdicional solicitada em cada caso concreto deverá ser necessária e adequada.
Como o processo não pode ser utilizado para mera consulta, a jurisdição só atua no sentido de um pronunciamento definitivo acerca da demanda se a sua omissão puder causar prejuízo ao autor – ou porque a parte contrária se nega a satisfazer o direito alegado, sendo vedado o uso da autotutela, ou porque a própria lei exige que determinados direitos só possam ser exercidos mediante prévia declaração judicial (por exemplo, ação de interdição e ação rescisória).[1] O interesse do autor pode limitar-se, ainda, à declaração da existência, inexistência ou modo de ser de uma relação jurídica, bem como da autenticidade ou falsidade de um documento (art. 19, I e II).
Nesse contexto, filho que pleiteia reconhecimento de paternidade contra quem já figura no assento de nascimento não tem interesse do provimento jurisdicional. Já o segurado tem interesse em ajuizar ação de cobrança em face da seguradora que se nega a pagar a cobertura pactuada.
Além do interesse-necessidade, é indispensável que a ação manejada pelo autor seja a adequada. Ainda que a parte tenha necessidade da intervenção do Judiciário para afastar uma lesão de direito, o mandado de segurança somente será admitido se o ato lesivo for de autoridade e houver prova pré-constituída. Inexistentes tais requisitos, a ação de mandado de segurança se mostra inadequada, pelo que o autor será julgado carecedor da ação proposta por falta de interesse de agir.
Destarte, entende-se que terá interesse de agir quem demonstrar a necessidade da tutela jurisdicional formulada e a adequabilidade do procedimento instaurado para a obtenção do resultado pretendido.
Não obstante a doutrina majoritária exigir a adequação como requisito caracterizador do interesse de agir, conhecida e pertinente é a crítica de Barbosa Moreira.[2] Segundo o renomado jurista carioca, “aberra o bom senso afirmar que uma pessoa não tem interesse em determinada providência só porque se utilize da via inadequada. Pode inclusive acontecer que a própria escolha da via inadequada seja uma consequência do interesse particularmente intenso; se alguém requer a execução sem título, não será possível enxergar-se aí uma tentativa, ilegítima embora, de satisfazer interesse tão premente, aos olhos do titular, que lhe pareça incompatível com os incômodos e delongas da prévia cognição? Seria antes o caso de falar em excesso do que em falta de interesse”.[3]
De fato, não faz muito sentido afirmar que inexiste interesse de agir caso adotado procedimento inadequado. Aquele que pretende, em mandado de segurança, anular ato de autoridade pública que lhe é lesivo, mas não apresenta com a inicial provas pré-constituídas do direito alegado, não deixa de ter interesse na desconstituição do ato lesivo. Não obstante, o entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, e que também deve ser seguido nos fóruns e nas provas objetivas de concurso, é o de que o interesse de agir engloba tanto a necessidade da tutela jurisdicional pleiteada quanto a adequabilidade do provimento instaurado para obtenção do resultado pretendido. Deve-se ressalvar uma exceção. É quando o credor com título executivo, em vez da execução específica, opta pela ação de conhecimento. Nesse caso não se reconhece ausência de interesse processual, na modalidade inadequação do procedimento ante a ausência de qualquer prejuízo ao réu, que continuará a dispor de meios necessários ao exercício do contraditório e da ampla defesa. Em síntese, aquele que possui um título executivo extrajudicial pode exercer o direito que dele resulta por meio de uma ação de execução, de uma ação monitória ou mesmo de uma ação de cobrança. É um dispêndio desnecessário de esforço permitir que alguém ajuíze uma ação de cognição quando se permitir instaurar de imediato um processo executivo. Mas é assim que encaminhou a jurisprudência.[4] É importante que os juízes sejam bastante rígidos na análise da presença do interesse de agir. Assistimos atualmente a uma litigiosidade sem fim. Pede-se exibição de documentos sem nunca os ter pedido diretamente ao réu. Cobra-se o seguro avençado sem nunca ter se dirigido à seguradora para tentar receber a quantia. Como nunca, as pessoas têm procurado abrigo debaixo da toga dos juízes sem ao menos se dar ao trabalho de pleitear a natural efetivação do direito.
Essa pretensa garantia de acesso amplo e irrestrito à jurisdição acirra os ânimos dos sujeitos e, ao invés de evitar os conflitos, os potencializa. Como consequência, temos um demandismo desenfreado, uma verdadeira corrida ao Judiciário, que abarrota as prateleiras principalmente dos juízos de primeira instância, tornando ainda mais morosa a prestação da tutela jurisdicional àquelas situações que realmente necessitam da intervenção do Estado-juízo.
Penso, por isso, que deveríamos caminhar no sentido de maior condicionamento para o acesso ao Judiciário, preservando o caráter secundário da jurisdição. Tal já ocorre no Habeas data e nos litígios envolvendo direito desportivo, bem como para o ingresso nas instâncias especial e extraordinária. É o que se propõe, de lege ferenda.
b) Legitimidade para a causa (legitimatio ad causam)
Em princípio, decorre da pertinência subjetiva com o direito material controvertido. Serão partes legítimas, portanto, os titulares da relação jurídica deduzida (res in iudicium deducta). Diz-se “em princípio” porque o Código, em casos excepcionais, autoriza pessoa estranha à relação jurídica pleitear, em nome próprio, direito alheio. Trata-se da denominada legitimidade extraordinária (ou substituição processual).
Para se ter uma compreensão mais ampla acerca da legitimidade para a causa, faz-se imprescindível definir qual a teoria que se aplicará para o exame da presença ou não de tal condição, que pode ser tanto a teoria da exposição quanto a da asserção.
As referidas teorias serão mais bem analisadas no tópico seguinte. Porém, para manter a linearidade do texto, cumpre adiantar que, conforme a teoria da exposição, as partes serão legítimas quando provarem sua pertinência subjetiva com o direito material controvertido. O juízo acerca da presença de tal condição, como se vê, aproxima-se o máximo possível – para não se dizer que coincide – do juízo de mérito.
Já para a teoria da asserção, não se exige que a pertinência com o direito material seja real. Basta a mera afirmação. Assim, se José afirma que tem um crédito contra João, tem legitimidade para figurar no polo ativo da relação processual, ainda que posteriormente, na sentença, fique definido que o direito não o ampara. Ao contrário, se José, em nome próprio, ajuíza a ação, argumentando que o crédito pertence a Antônio, será considerado parte ilegítima.
A ilegitimidade pode ocorrer também com relação ao polo passivo. Manoel, em ação de reparação de danos, narra fatos envolvendo veículo de propriedade da SLU (autarquia municipal), mas nomeia, como réu, o Município de Belo Horizonte. O caso é de ilegitimidade passiva ad causam. Ao contrário, se os fatos narrados tiverem pertinência com o réu (no caso, a propriedade do veículo causador do dano), ainda que a sentença declare que o veículo causador do dano não era de propriedade da pessoa demandada, haverá legitimidade passiva; o pedido é que será julgado improcedente.
Em suma, pouco importa o direito controvertido real, existente, que possa ser reconhecido na sentença. O que interessa para verificação da legitimidade é o direito abstratamente invocado, a afirmação do autor, de tal forma que o juiz possa estabelecer um nexo entre a narrativa e a conclusão.
A regra geral, portanto, é que serão partes legítimas para a causa aqueles que afirmam ser titulares da relação jurídica deduzida na inicial (legitimação ordinária).
No entanto, em determinadas hipóteses, a lei autoriza que alguém pleiteie, em nome próprio, direito alheio. São os casos de legitimação extraordinária ou substituição processual.[5] Assim, o sindicato (substituto) pode atuar na defesa dos interesses dos seus associados (substituídos), nos termos do art. 8º, III, da CF/1988, e o Ministério Público está autorizado a defender em juízo direitos coletivos (art. 129, III, da CF/1988).
A legitimação extraordinária pode ser subordinada ou autônoma. Esta última ainda se subdivide em exclusiva e concorrente.
Será subordinada quando se fizer imprescindível a presença do legitimado ordinário para a regularidade da relação processual. O legitimado extraordinário assumirá “posições processuais acessórias”, ou seja, participará do processo “como assistente do legitimado ordinário”.[6]
A legitimação extraordinária será autônoma quando o legitimado extraordinário estiver autorizado a vir a juízo e conduzir o processo independentemente da participação do legitimado ordinário. Subdivide-se em legitimação exclusiva e concorrente.
Diz-se exclusiva quando apenas o legitimado extraordinário, e não o legitimado ordinário, puder vir a juízo. O exemplo dado é o da ação popular, na qual o cidadão age como substituto processual da coletividade, no uso de uma prerrogativa que constitucionalmente lhe é reconhecida (art. 5º, LXXIII, da CF/1988).[7]
Nos casos de legitimação extraordinária autônoma concorrente, tanto o legitimado extraordinário quanto o ordinário podem ir a juízo, isoladamente ou em litisconsórcio facultativo. É o que ocorre na ação de investigação de paternidade com relação ao investigante (legitimado ordinário) e o MP (legitimado extraordinário).
É importante que fique claro que o substituto processual (legitimado extraordinário) age em nome próprio, na qualidade de parte processual. Distingue-se, pois, do representante, que age em nome do representado. É com relação, portanto, ao substituto que serão examinados os pressupostos processuais subjetivos (capacidade de ser parte e capacidade processual).
Observe que, com a coletivização dos direitos (direitos de terceira geração), ampliou-se sobremaneira o rol das entidades com legitimidade e capacidade para agir em juízo na tutela desses direitos. Assim é que se reconhece legitimidade para as causas envolvendo direitos difusos e coletivos stricto sensu também à Defensoria Pública, ao PROCON, às autarquias, às empresas públicas, às fundações, às sociedades de economia mista e a associações constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico.[8]
Salvo disposição legal em contrário (art. 103 do CDC; art. 274 do CC), os efeitos da coisa julgada emanada de processo conduzido pelo substituto se estenderão ao legitimado ordinário, sendo essa a principal utilidade da substituição processual.
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”.
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[1] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 38.
[2] A conhecida crítica de Barbosa Moreira foi esposada por ocasião da defesa da tese de livre-docência de Cândido Dinamarco.
[3] DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 405-406.
[4] Nesse sentido: STJ, REsp 981.440/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 12.04.2012.
[5] Alguns doutrinadores tratam a substituição processual como espécie de legitimação extraordinária. A substituição só ocorreria quando alguém estivesse em juízo em nome próprio, em lugar do legitimado ordinário. Dessa forma, se a demanda fosse proposta pelos legitimados extraordinário e ordinário, em litisconsórcio, não se teria substituição processual, mas apenas legitimação extraordinária. Nesse sentido, conferir: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. v. I, p. 131.
[6] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2008. p. 178.
[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Estudos e pareceres de direito público. São Paulo: RT, 1986. v. 9, p. 369.
[8] O “Movimento das Donas de Casa e Consumidores” constitui exemplo de associação legitimada para atuar em juízo na defesa do consumidor. A respeito: REsp 579.096/MG, DJ 21.02.2005, p. 173.