Durante a tramitação do processo, o juiz tem o poder-dever de velar pela solução do litígio de forma adequada, reprimindo aqueles atos que se manifestem contrários ao desenvolvimento regular do feito e à dignidade da justiça.
Assim, em se verificando que uma das partes está litigando de má-fé, o juiz tem o poder-dever de aplicar, de ofício e em qualquer grau de jurisdição, multa em valor superior a 1% (um por cento) e inferior a 10% (dez por cento) do valor corrigido da causa[1] (art. 81). Entretanto, se o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o salário mínimo vigente (art. 81, § 2º). Além disso, o órgão jurisdicional condenará o litigante a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a pagar os honorários advocatícios e todas as despesas que ela tenha efetuado.
As hipóteses de litigância de má-fé encontram-se configuradas no art. 80 do CPC/2015, o qual dispõe que:
Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II – alterar a verdade dos fatos;
III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI – provocar incidente manifestamente infundado;
VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
Para facilitar a compreensão, trouxemos exemplos na doutrina e jurisprudência sobre cada hipótese prevista nos incisos do art. 80:
Dedução de pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso | Autora que ajuíza ação com base em pedido formulado em ação anterior, já acobertada pela coisa julgada (TJ-MG – AC: 10024111505251001 Belo Horizonte, Relator: Marco Aurelio Ferenzini, Data de Julgamento: 08/10/2020, Câmaras Cíveis / 14ª Câmara Cível, Data de Publicação: 08/10/2020). |
Alteração da verdade dos fatos | “Quando a parte nega expressamente fato que sabe ter existido, afirma fato que sabe inexistente ou confere falsa versão para fatos verdadeiros, com o objetivo consciente de induzir juiz em erro e assim obter alguma vantagem no processo” (TJMG, AC: 10000211243464001 MG, Relator: Fausto Bawden de Castro Silva (JD Convocado), Data de Julgamento: 31/08/2021, 9ª Câmara Cível, Data de Publicação: 08/09/2021). Serve também como exemplo o que consta do Enuciado 161, da III Jornada de Direito Processual Civil do CJF: “Considera-se litigante de má-fá, nos termos do art. 80 do CPC, aquele que menciona em suas manifestações precedente inexistente”. |
Utilização do processo para conseguir objetivo ilegal | “O ajuizamento de ação declaratória de inexistência de débito, com vistas a alcançar a exclusão do nome do devedor dos registros de SPC, SERASA e CCF, além de danos morais, na hipótese em que é conhecedor da existência de relação jurídica, assim como seu inadimplemento, evidencia propósito ilegal e abusivo, devendo ser interpretado como litigância de má fé” (TJ-MG – AC: 50226658320168130079, Relator: Des.(a) Luiz Artur Hilário, Data de Julgamento: 10/12/2019, 9ª Câmara Cível, Data de Publicação: 12/12/2019) |
Resistência injustificada ao andamento do processo | “Peticionar nos autos executórios com a pretensão de rediscutir matéria já analisada e definitivamente julgada configura indesejada resistência ao regular andamento do processo” (TJ-MG – AI: 10702100044065002 Uberlândia, Relator: Armando Freire, Data de Julgamento: 27/09/2017, 1ª Câmara Cível Data de Publicação: 04/10/2017) |
Adoção de condutas temerárias | “A propositura de ações referentes ao mesmo fato, em datas e comarcas diversas, todas por um único procurador constituído, configura conduta temerária, uma vez que evidente o propósito de levar a erro o Poder Judiciário, mediante a ocultação dessa informação ao juízo” (TJ-MT – AC: 10216528120228110041, Relator: Maria Aparecida Ferreira Fago, Data de Julgamento: 25/04/2023, Segunda Câmara de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 29/04/2023) |
Provocação de incidente manifestamente infundado | “Manifesta abusividade da impugnação ao cumprimento de sentença apresentado pelo Município/executado, que apenas repetiu as teses de defesa sustentadas na fase de conhecimento, ignorando a decisão já transitada em julgado que as enfrentou e rechaçou expressamente. 3. Litigância de má-fé caracterizada, pela provocação de incidente manifestamente infundado (art. 80, VI, do CPC/15)” (TJ-MG – AC: 10245100093930002 Santa Luzia, Relator: Áurea Brasil, Data de Julgamento: 09/03/2017, 5ª Càmara Cível, Data de Publicação: 21/03/2017) |
Interposição de recurso com intuito manifestamente protelatório | “Considera-se litigante de má-fé aquele que interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório, o que ocorre quando o apelo visa à rediscussão de matéria transitada em julgado” (TRT-4 – AP: 01320009420075040029, Relator: Lucia Ehrenbrink, Data de Julgamento: 30/03/2023, Seção Especializada em Execução). |
Perceba que a maioria das hipóteses são genéricas e se confundem. De toda forma, o mais importante é ter em mente que a litigância de má-fé não se presume, sendo exigida uma conduta manifestamente desleal.
O rol do art. 80 é taxativo, numerus clausus, não comportando ampliação. A taxatividade, porém, refere-se apenas às hipóteses caracterizadoras da litigância de má-fé, e não à incidência do instituto, tendo em vista que o preceito do dispositivo em comento poderá ser aplicado aos processos regulados por legislações extravagantes, como a ação civil pública, a ação popular, entre outras.[2]
Merece destaque, ainda no campo da taxatividade, o fato de que as penalidades por litigância de má-fé referem-se a direito processual, sendo, portanto, matéria de competência legislativa da União. Isso quer dizer que somente uma lei federal poderá inserir novas condutas que justificam a referida penalidade (art. 22, I, da CF/88). A propósito, recentemente o Supremo Tribunal Federal definiu ser inconstitucional norma estadual que institui sanções processuais diversas da legislação federal para litigantes que abusem do seu direito à prestação jurisdicional (STF, Plenário, ADI 7.063/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, j. 03.06.2022).
Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária (art. 81, § 1º).
A responsabilidade pelas perdas e danos decorrente da litigância de má-fé alcança o autor, o réu e os terceiros intervenientes (art. 79, caput). Para que reste configurada, a jurisprudência exige que a conduta do agente seja dolosa. Assim, para caracterizar a litigância de má-fé, capaz de ensejar a aplicação de multa, é necessária a intenção dolosa do agente, apta a configurar uma conduta desleal (p. ex.: STJ, AgInt no AREsp 1.427.716).
Antes de o juiz condenar a parte às sanções previstas no art. 81, deverá oportunizar prazo para defesa, nos termos dos arts. 9º e 10, sob pena de violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Após essa manifestação, se o juiz entender ser aplicável a sanção, o valor da multa imposta reverterá em benefício da parte contrária (art. 96, primeira parte).
Por fim, importa registrar que a litigância de má-fé é tema recorrente nas decisões do Superior Tribunal de Justiça. A seguir trazemos alguns dos julgados mais importantes para provas de concursos e, em especial, para a prática forense:
(i) A interposição de recurso cabível que reitera os argumentos já ventilados ao longo do processo configura protelação para fins de aplicação da pena por litigância de má-fé? O STJ, reiteradamente, considera que a interposição de recursos cabíveis no processo, por si só, não implica litigância de má-fé, muito menos ato atentatório à dignidade da justiça. Por exemplo, no julgamento do REsp 1.333.425, a Min. Nancy Andrighi registrou que a interposição de recurso cabível, “ainda que com argumentos reiteradamente refutados pelo tribunal de origem ou sem a alegação de qualquer fundamento novo, apto a rebater a decisão recorrida, não traduz má-fé nem justifica a aplicação de multa”.
(ii) Para a aplicação da multa é necessária a ocorrência de dano processual? Além de o CPC não fazer esta exigência, é pacífico na jurisprudência o entendimento segundo o qual a aplicação da penalidade por litigância de má-fé prescinde da comprovação de dano processual (p. ex.: STJ, REsp 1.628.065). A multa configura mera sanção processual e, em caso de dano, ainda será possível ao prejudicado pleitear a indenização cabível.
(iii) Além da multa, é possível a aplicação de outras penalidades ao litigante de má-fé? No julgamento do REsp 1.663.193, o STJ afastou essa possibilidade. No caso concreto, além da multa por litigância de má-fé, o juiz entendeu pela revogação do benefício da assistência judiciária gratuita. Para a relatora, Min. Nancy Andrighi, “apesar de reprovável, a conduta desleal de uma parte beneficiária da assistência judiciária gratuita não acarreta, por si só, a revogação do benefício, atraindo, tão somente, a incidência das penas expressamente previstas no texto legal”. Esse entendimento foi novamente exposto no julgamento do REsp 1.989.076/MT. Isso não quer dizer que não seja possível cumular, por exemplo, a penalidade por ato atentatório e por litigância de má-fé, ou por oposição de embargos protelatórios e violação ao art. 80, VII[3]. O que a jurisprudência não admite é que o juiz crie outras penalidades para o litigante além daquelas já previstas.
(iv) Aplicam-se as penalidades previstas no CPC ao processo penal? Por não existir previsão legal, eventual conduta passível de enquadramento no art. 81 do CPC não pode ser punida com as penas ali previstas. Prevalece a impossibilidade de analogia in malam partem, ou seja, em prejuízo ao réu. Nesse sentido: “Esta Corte Superior firmou o entendimento de que não é cabível a imposição de multa por litigância de má-fé no âmbito do processo penal, porquanto sua aplicação constituiria indevida analogia in malam partem, haja vista ausência de previsão expressa no Código de Processo Penal” (STJ, HC 401.965/RJ). Vale registrar que o STF tem posicionamentos isolados admitindo a aplicação. Nesse sentido: “A utilização indevida das espécies recursais no processo penal desvirtua o postulado da ampla defesa e configura abuso do direito de recorrer, sendo permitido, em tais casos, a fixação de multa por litigância de má-fé” (2ª Turma, HC 192814 AgR/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 16/11/2020).
(v) É possível que uma legislação estadual crie novas sanções decorrentes da litigância de má-fé? A resposta é negativa. A instituição de sanções processuais para litigantes que abusem do seu direito à prestação jurisdicional invade a competência da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I, da Constituição Federal). Por isso mesmo, em um determinado caso concreto, em que a legislação do Rio de Janeiro previu multa ao chamado “litigante contumaz”, o STF declarou a inconstitucionalidade da norma estadual (ADI 7063/RJ, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 3/6/2022).
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”.
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[1] O CPC/1973 (art. 18) determinava que a multa não poderia exceder a 1% sobre o valor da causa.
[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil e legislação processual civil extravagante em vigor. 9. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 184.
[3] Nesse sentido: “Admissível a cumulação das sanções por litigância de má-fé e por embargos manifestamente protelatórios, visto que possuem natureza jurídica diversa” (TJ-SP – EMBDECCV: 10380121120208260602 Sorocaba, Relator: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 01/07/2023, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 01/07/2023).